RIO DE JANEIRO

Polícia quer ouvir médicos de todos os hospitais que atenderam passista que perdeu o braço

Mulher perdeu o braço em cirurgia na qual deveria ser retirado um mioma

Cabelereira e passista da escola de samba,  Alessandra dos Santos Silva teve o braço amputado e o útero retiradoCabelereira e passista da escola de samba, Alessandra dos Santos Silva teve o braço amputado e o útero retirado - Foto: Reprodução

O primeiro cirurgião que operou a passista da Grande Rio, Alessandra dos Santos Silva, de 35 anos, que teve o braço amputado após complicação de uma cirurgia de retirada de mioma, prestou depoimento no final da manhã desta terça-feira. Gustavo Machado depôs na condição de testemunha auxiliando nas investigações da 64ª DP (São João de Meriti). O médico negou qualquer negligência no Hospital Estadual da Mulher Heloneida Studart e disse que houve um problema vascular que levou a retirada do útero de Alessandra. A polícia quer ouvir os médicos dos outras hospitais onde ela passou. Ao comparecer ao Hospital Municipal Souza Aguiar, na tarde desta terça-feira, para uma consulta de revisão de outro procedimento, realizado na barriga, a paciente voltou a acusar a unidade da Baixada de erro médico e cobrou justiça.

Em nota, a Fundação Saúde, que administra o Hospital da Mulher Heloneida Studart e o Instituto Estadual de Cardiologia Aluizio de Castro, faz um levantamento detalhado do atendimento dado a Alessandra e informa que "em 3 de fevereiro, às 14h, ela foi submetida a cirurgia para retirada dos 17 miomas, com preservação do útero, ovários e trompas, numa tentativa de respeitar seu desejo de engravidar". O órgão expressa ainda solidariedade "com a paciente e sua família e ressalta que Alessandra foi atendida durante todo seu período de internação por especialistas e tendo acesso aos tratamentos e medicamentos necessários para a preservação da sua vida" (Leia ao fim desta matéria a íntegra da nota).

— Graças a Deus agora está tudo bem, mas tem sido tudo muito difícil. Só espero que a justiça seja feita. Vamos aguardar. Não tem como não ter sido erro médico. Está claro isso — apontou a passista.

Alessandra foi internada no Hospital da Mulher para a retirada de um mioma no útero. Durante a cirurgia teve o órgão retirado, ao que o médico Gustavo Machado, na delegacia, contou ter sido em decorrência de um "problema vascular". Durante o depoimento, segundo o delegado titular da 64ª DP, Bruno Enrique de Abreu Menezes, o cirurgião afirmou que a decisão de amputar parte do braço esquerdo da paciente foi tomada na segunda unidade para onde ela foi levada, o Instituto Aloysio de Castro, em Laranjeiras, na Zona Sul do Rio.

A passista fez a operação para a retirada do mioma no dia 3 de fevereiro deste ano, após seis meses de espera desde a detecção da necessidade de cirurgia. No fim do mesmo dia, uma hemorragia foi detectada e a equipe médica avisa da necessidade de nova operação, desta vez para uma histerectomia total (retira completa do útero). Os procedimentos foram explicados pelo cirurgião em depoimento.

— Ele (o médico) está explicando o procedimento médico, como foi feita a cirurgia. Da cirurgia da retirada do mioma agravou para uma histerectomia, e teve que retirar o útero da paciente. Pós-operatório teve um agravamento na parte vascular, identificado o problema vascular, foi encaminhada para o hospital com a especialidade nesse caso, e nesse segundo hospital é que foi feito o procedimento de retirada do membro. Então, ele não tem como explicar o porquê. A gente vai ouvir o médico do segundo hospital, para entender qual foi o quadro clínico com que ela chegou e como ele decidiu a amputação do membro — disse o delegado da 64ª DP em entrevista ao RJTV, da TV Globo.

O delegado esclareceu que o ginecologista e um outro médico do CTI para onde Alessandra foi levada foram ouvidos, mas que espera ouvir os profissionais do Instituto Estadual de Cardiologia Aloysio de Castro, a segunda unidade onde a passista passou e onde foi feita a amputação do braço.

— Esse primeiro médico não sabe o que levou o segundo a amputar o membro. Mas existe uma evolução de quadro da paciente, a gente ainda não sabe se houve negligência ou uma imperícia, é algo que só a conclusão médico jurídica vai poder apontar — disse o delegado.

Equipes da Polícia Civil estiveram na segunda-feira no Hospital da Mulher para requisitar o prontuário médico e agendar a data para que os médicos prestassem depoimentos. Os profissionais compareceram à delegacia nesta terça-feira espontaneamente. Numa outra fase da investigação, serão requisitados os prontuários das outras unidades de saúde por onde a passista passou após a cirurgia, além dos depoimentos dos outros médicos envolvidos.

— O próximo passo vai ser, requisitar e receber o prontuário dos outros hospitais e também ouvir os médicos que prestaram atendimento nesses outros hospitais.

O delegado disse ser muito cedo para concluir que houve imprudência ou uma negligência. O prontuário médico do Hospital da Mulher vai ser encaminhado ao Instituto Médico-Legal, que deverá dar o parecer .

O Souza Aguiar foi a última unidade por onde a paciente passou. Lá ela permaneceu um por um mês, de 4 de março a 4 de abril, para tratar de uma infecção na barriga, segundo disse, resultado o primeiro atendimento no hospital da Baixada. Ontem retornou à unidade para consulta de revisão e retirada dos pontos. A passista, que tem 1,83m de altura, está andando curvada e com dificuldade. Ela chegou ao hospital acompanhada da mãe, Ana Maria. Alessandra disse que não pretendia tornar público o seu caso, mas resolveu fazê-lo para encorajar outras pessoas que passam pela mesma situação.

— As pessoas precisam ter coragem para falar. Se todos fizerem isso, essa coisa vai acabar. Esse tipo de erro destrói sonhos e destrói vidas — disse.

Pela manhã, a Secretaria de Estado de Saúde divulgou nota, lamentando o ocorrido com a cabeleireira e passista da Grande Rio. No texto, o órgão dizia que a direção do Hospital Estadual da Mulher Heloneida Studart, em São João de Meriti, informou que a equipe da ginecologia da unidade definiu, "em conjunto com a paciente, esclarecendo pros e contras", o procedimento necessário ao caso em questão. Essa versão é contestada por Alessandra:

— Como disse o tempo todo que queria ser mãe, o médico disse que faria de tudo para preservá-lo. Perguntei se havia outro risco (além de perder o útero). Mas ele alertou apenas que poderia haver sangramento. A única coisa que me disseram sobre risco foi isso. Agora, de perder o braço ninguém falou nada. Se disseram algo desse tipo é mentira. Não havia como dar complicação nenhuma porque não sou alérgica a medicamento nenhum — relatou a paciente que disse ter conversado com um único médico.

Segundo a passista, o único alerta que a ginecologista do hospital fez é de que ela estava com um mioma muito avantajado e isso ela já sabia. Por esse motivo estava querendo fazer a cirurgia. Contou ainda que todos os exames de risco cirúrgico foram feitos no Hospital da Mulher.

—Os exames não apontaram nenhum problema que impedisse a cirurgia. Querem dizer que me alertaram do risco da cirurgia para eu ficar com uma culpa que não é minha — reclamou a trancista

Ela disse ainda que deixou o hospital com a barriga "infectada e com pele morta" e que precisou ser submetida a novo procedimento no Hospital Municipal Souza Aguiar para limpeza. Antes disso, chegou a passar por outras unidades, que teriam recusado a paciente. Ela reclamou ainda que em nenhum momento foi procurada pela unidade da Baixada.

—Só descobriram que eu estava viva por causa das reportagens — criticou.

Alessandra disse que pretende pedir indenização do Estado, porque era ela quem mantinha o sustento da casa com o seu trabalho, já que a mãe teve câncer de mama e o pai é aposentado. Ela contou que os amigos organizaram uma vaquinha virtual e é com esse ajuda que tem conseguido se manter.

— Eu era trancista implantista. Precisava do meu braço para trabalhar. Daqui para a frente foi precisar de ajuda do estado para me manter. Tem que me dar uma indenização, já que psicologicamente e fisicamente não vão conseguir me restaurar. Não consigo nem me olhar no espelho. Era noiva e nem sei se ainda sou. Sonhava ser mãe e destruíram isso. Era uma passista vaidosa. Não me vejo mais nem sambando sem o meu braço — desabafou.

A nota do Estado diz que "apesar de todo empenho da equipe, lamentavelmente, a evolução clínica da paciente foi desfavorável" e que no pós-operatório, foi identificada uma hemorragia interna. Para salvar a vida da paciente, segundo o texto, foi necessária a retirada do útero, transfusão sanguínea e administração de doses elevadas de aminas vasoativas, "que provocam o estreitamento dos vasos sanguíneos para manter a pressão arterial, mas que podem causar uma oclusão arterial como efeito adverso". Levantamento preliminar do caso aponta que foi isso que aconteceu no braço da paciente, informou a nota.

Também por meio de nota, a Acadêmicos do Grande Rio informou que está acompanhando de perto o caso da sua passista e se solidarizou com a família. "Nos uniremos ao esforço de buscar justiça diante do ocorrido", diz o texto. A família registrou queixa na 64ª DP (São João de Meriti).

Entenda o caso:
Em agosto, Alessandra começou a sentir dores e apresentar sangramento. Com o diagnóstico de miomas no útero, ela foi orientada a fazer a cirurgia para retirada. Em janeiro, ela recebeu ligação marcando a operação para 3 de fevereiro no Hospital Estadual da Mulher Heloneida Studart, em São João de Meriti. No dia seguinte, os médicos avisaram à família da paciente que seria preciso retirar o útero por completo. Na sequência, os parentes perceberam que os dedos da mão esquerda da cabeleireira haviam escurecido.

— Nem foto eles deixaram a gente tirar. Eu perguntei por que as mãos dela estavam enfaixadas. Disseram que é porque ela estava com frio, mas já estava necrosando os dedos. Eles esconderam — disse Ana Maria, mãe de Alessandra.

Em 6 fevereiro, a equipe médica comunicou que a paciente teria que ser transferida para o Instituto Estadual de Cardiologia Aloysio de Castro, em Botafogo. Segundo parentes, naquele momento, o braço da passista já estava todo escuro.

Após quatro dias, a família ouviu que “ou era a vida de Alessandra ou era o braço” depois de uma drenagem não dar certo, e autorizou a amputação. Além disso, a situação se agravou, e a passista ficou dois dias em coma, quando os rins e o fígado da paciente quase pararam de funcionar.

Alessandra teve alta em 15 de fevereiro, mas, 13 dias depois, quando foi examinar os pontos das cirurgias, o médico se assustou com o curativo na barriga e a encaminhou de volta para o Heloneida Studart. Traumatizada, a cabeleireira não quis retornar ao local onde começou seu drama e tentou vaga em cinco unidades até conseguir ser internada no Hospital Maternidade Fernando Magalhães, de onde acabou sendo transferida para o Hospital municipal Souza Aguiar, onde ficou de 4 de março a 4 de abril.

Confira a íntegra da nota do Estado

"A paciente Alessandra dos Santos Silva teve seu primeiro atendimento na emergência do Hospital Estadual da Mulher Heloneida Studart em 21/07/2020, sendo realizada ultrassonografia, que constatou quadro de miomatose uterina múltipla. Ela foi encaminhada para acompanhamento ambulatorial.

Em novembro de 2022, ela retornou ao ambulatório de ginecologia do hospital, sendo indicada cirurgia para retirada de 17 miomas. Em dezembro, a paciente passou por consulta e exames para risco cirúrgico. Ela teve que realizar uma transfusão sanguínea devido ao quadro de anemia gerada pela miomatose.

Em 2 de fevereiro de 2023, a paciente é internada para cirurgia, sendo necessária a realização de nova transfusão sanguínea pré-operatória. A equipe médica esclareceu sobre a complexidade do procedimento e ela assinou termo de consentimento para a cirurgia.

Em 3 de fevereiro, às 14h, ela foi submetida à cirurgia para retirada dos 17 miomas, com preservação do útero, ovários e trompas, numa tentativa de respeitar seu desejo de engravidar.

Às 00h10 do dia 4, Alessandra começou a apresentar complicações clínicas que levaram a um novo procedimento cirúrgico para conter sangramento no local da cirurgia. A paciente foi então submetida à histerectomia (retirada do útero). Após o procedimento, ela foi encaminhada ao UTI para continuidade do tratamento do choque hemorrágico, sendo administradas altas doses de aminas vasoativas, que provocam o estreitamento dos vasos sanguíneos para manter a pressão arterial. Um dos possíveis efeitos adversos desta medicação é a oclusão vaso arterial, que leva à redução do fluxo sanguíneo, podendo levar à necrose das extremidades do corpo.

Em função da piora clínica do quadro, com hipotensão grave, às 14h do mesmo dia, Alessandra retorna ao centro cirúrgico, sendo submetida ao terceiro procedimento para investigação de possível novo sangramento. Ela retorna à UTI em estado grave.

No dia 5 de fevereiro de 2023, foi observado que as extremidades do corpo de Alessandra estavam frias e arroxeadas. A equipe enfaixou os membros da paciente para melhorar a circulação sanguínea. Foi realizado doppler, que constatou obstrução arterial no braço esquerdo.

Constatando a obstrução de artérias do antebraço esquerdo, a paciente foi estabilizada e transferida para o Instituto Estadual de Cardiologia Aloysio de Castro (IECAC), centro de referência em cirurgias cardiológicas e vasculares. A gravidade do quadro de saúde e a necessidade de transferência foram informadas aos familiares.

Em 6 de fevereiro de 2023, a paciente foi submetida ao quarto procedimento cirúrgico para desobstrução das artérias. Permaneceu internada no CTI em estado grave, tendo evoluído para insuficiência hepática e renal e distúrbio de coagulação grave.

No dia 10 de fevereiro, permanecendo em estado grave e sedada, a família foi informada sobre a necessidade da amputação parcial do membro superior esquerdo a fim de preservar a vida de Alessandra. Seus pais assinaram termo de consentimento para esse procedimento cirúrgico.

Foi então submetida à quinta cirurgia, para amputação parcial do membro superior esquerdo. Seguiu em acompanhamento na CTI, com melhora progressiva até a alta hospitalar em 16 de fevereiro. Na mesma data, ela foi orientada e seus pais contatados para retornar para acompanhamento no ambulatório de ginecologia no Hospital da Mulher.

A Fundação Saúde se solidariza com a paciente e sua família e ressalta que Alessandra foi atendida durante todo seu período de internação por especialistas e tendo acesso aos tratamentos e medicamentos necessários para a preservação da sua vida.

A Fundação instaurou sindicância para apurar toda a conduta médica e administrativa nas duas unidades de saúde."

Cronologia do pesadelo:
Agosto de 2022: Alessandra descobre miomas no útero, e médico indica cirurgia.

30 de janeiro: Passista recebe ligação do Heloneida Studart marcando a operação.

3 de fevereiro: Alessandra é operada de manhã. À noite, uma hemorragia é detectada.

4 de fevereiro: Hospital avisa que fará histerectomia total, ou seja, a retirada completa do útero.

5 de fevereiro: Passista é intubada e está com pontas dos dedos escuras e pernas e braços enfaixados.

6 de fevereiro: Transferência para o Instituto Aloysio de Castro, onde médicos falam do risco de necrose no braço.

10 de fevereiro: Médicos explicam que, se braço não for amputado, Alessandra morre. Família autoriza.

15 de fevereiro: Passista recebe alta.

4 de março: Internação no Hospital Fernando Magalhães e transferência para o Souza Aguiar.

4 de abril: Alessandra recebe alta.

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