Presença feminina avança no setor de transporte; conheça algumas histórias
Em um ambiente ainda ocupado predominantemente por homens, a atuação das mulheres na área vem sendo cada vez mais forte
Quando você pensa em profissionais que atuam conduzindo veículos, gerenciando atividades de trânsito e transporte ou desenvolvendo tecnologias de mobilidade, qual as primeiras imagens que lhe vêm à mente? Você imagina um homem ou uma mulher nessas ocupações? Ou, alterando um pouco a pergunta, quantas mulheres você já viu atuando nessa área? Em um ambiente ainda altamente masculino, a presença feminina não costuma passar despercebida, sendo alvo, muitas vezes, de olhares ou comentários surpresos ou machistas, mas, não por isso, deixando de existir e ser exercida.
Maquinista há mais de três décadas
Há 33 anos como maquinista da Companhia Brasileira de Trens Urbanos (CBTU), a recifense Sandra Abreu, de 56 anos, recorda-se bem de momentos preconceituosos que vivenciou no início da carreira. “Muitos usuários chegavam à cabine para perguntar se era realmente a gente que estava na condução do trem. Então, eles aguardavam o próximo trem, esperando que um homem estivesse na condução, para só então fazer o trajeto da viagem”, lembrou. “A gente explicava a eles que podiam vir conosco, sem qualquer problema, mas, no entanto, no início, nós passamos por essa situação um pouco preconceituosa”, acrescentou.
Atualmente, a malha ferroviária que cobre a Região Metropolitana do Recife, passando, além da capital, pelas cidades de Jaboatão dos Guararapes, Cabo de Santo Agostinho e Camaragibe, conta com 71 quilômetros de extensão divididos em duas linhas e contemplando 37 estações de metrô e Veículo Leve sobre Trilhos (VLT). Diariamente, aproximadamente 150 mil pessoas utilizam o modal.
Muito mais do que ser condutora
Como destaca Sandra, a formação do maquinista vai além da condução do veículo: “Temos treinamento para saber a parte pneumática do trem, a parte elétrica, a parte de comunicação”. E, com o passar dos anos, afirma, o preconceito reduziu: “Foi acabando e diminuindo sensivelmente e os usuários foram se acostumando a ver mais mulheres na condução do trem”.
Se há 30 anos passageiros se recusavam a ingressar em um trem conduzido por mulheres, hoje, eles, e em especial elas, aguardam para seguir viagem com a motorista de ônibus Lúcia Rocha, de 44 anos de idade. “Muitas vezes as pessoas esperam, perguntam se eu estou na linha para vir também, porque gostam de andar comigo. O carro cheio e elas vêm mesmo assim”, contou.
Ainda são poucas no setor rodoviário
Lúcia Rocha atua no Terminal Integrado da Macaxeira - Foto: Arthur de Souza/Folha de Pernambuco
Lúcia Rocha iniciou a trajetória como rodoviária no transporte público há 13 anos, primeiro como cobradora, e, em 2016, migrou para a atividade de condutora. Hoje atua no Terminal Integrado da Macaxeira, um dos mais movimentados do Recife, e é uma das cinco mulheres motoristas da empresa em que atua, que conta com 247 homens na função. A média é similar ao de outras concessionárias urbanas que fazem parte do Grande Recife Consórcio de Transporte, empresa responsável pelo gerenciamento do transporte por ônibus na RMR.
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“As pessoas ainda se surpreendem ao ver uma mulher motorista mas também ficam gratas, porque você está conduzindo ali não só a sua vida mas a vida de muitas pessoas. Tem que ter cuidado e aí elas agradecem”, disse. Mas ela também já passou por situações de assédio: “O passageiro falou coisas que não estavam me agradando, eu reagi e pedi para ele parar para eu continuar o meu serviço em paz. Porque, primeiramente, a gente tem que ter respeito”.
A caminhoneira Ana Claudia Gimenez, de 48 anos, natural de Mogi das Cruzes (SP), enfrentou o machismo dentro de casa. Casada há 24 anos, ela ouviu do ex-marido, em 2019, que ele se divorciaria caso ela mantivesse a decisão de dirigir. “Ele é caminhoneiro. A gente ia trabalhar junto, e ele não permitiu. Disse que se eu fosse para a estrada, a gente iria se divorciar. Aí, eu falei: ‘então, a gente vai sim’”. A vontade de dirigir era um sonho compartilhado com o filho, falecido em 2017, perto de completar 18 anos.
Na estrada, Ana adota estratégias para sentir-se mais segura. “Quando eu paro em algum lugar para comer ou para dormir, geralmente à noite, eu desço pelo lado do carona, como se estivesse de carona, não como se eu estivesse dirigindo, porque aí eu consigo ver aonde eu estou e ter noção se dá para identificar que estou sozinha ou não”.
Na cabine do avião
Em formação para tornar-se pilota de avião, a mineira Laiara Amorim, de 33 anos, comissária de bordo, está na aviação desde 2011 e, ao longo desse tempo, conheceu menos de dez mulheres que atuavam nas cabines de comando. “Eu vejo que muitas pautas na aviação ainda estão atrasadas porque a questão da discussão de gênero, a questão da discussão racial, ainda não é algo que foi abraçado pelas companhias”, analisa.
Segundo dados da Agência Nacional de Aviação Civil, divulgados em 2020, as mulheres representam apenas 3% dos pilotos comerciais. Nos últimos três anos, houve aumento de 64% na quantidade de profissionais femininas. Idealizadora do projeto “Voe como uma garota negra”, Laiara busca incentivar o ingresso de mulheres negras na aviação: “É uma área majoritariamente masculina e branca. Hoje no Brasil não tem mulheres negras em linhas aéreas comerciais na cabine de comando. A minha vontade é incentivar outras que tenham o mesmo objetivo profissional que eu”.
Corrida por aplicativo
Quando a motorista de transporte por aplicativo Patrícia Moraes, de 45 anos, chega no local indicado para iniciar uma nova corrida, ela nota a surpresa dos passageiros. “Eles não têm costume ainda de olhar a foto do motorista no aplicativo. Por mais tempo que eu já tenho na área, mas ainda se torna uma surpresa pelo fato de ter poucas mulheres fazendo”, disse. Essa quantidade ainda menor em relação aos motoristas homens faz com que as passageiras comemorem ao serem atendidas por Patrícia: “Elas só faltam soltar fogos, especialmente por eu trabalhar mais à noite, e contam que se sentem mais seguras por estarem indo com uma mulher”.
Patrícia ingressou na plataforma em 2018 e, apesar de contar serem mais raras, já vivenciou situações desagradáveis e de machismo ou assédio. “Alguns homens até fazem ‘nossa, uma mulher dirigindo’. Aí, depois, tentam contornar a situação mas a gente percebe aquele preconceito. Melhorou um pouco mais, mas que existe, com certeza”, analisou.
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Atuação no setor operacional
Para a agente de trânsito Anny Rodrigues, 33 anos, o cenário da área tem evoluído ao longo do tempo. “Assim que o meu grupo entrou na carreira, após o concurso, em 2012, fomos para o setor operacional, que era na rua, para fazer monitoramento. E eu percebia que acontecia de as pessoas estranharem e, aos poucos, com a chegada de mais mulheres, é que foi ficando mais comum de ver agente de trânsito mulher, no setor operacional, e também em outros”, contou.
Atualmente, ela atua em um departamento interno da Autarquia de Trânsito e Transporte Urbano do Recife (CTTU): "Quando eu entrei no setor que estou agora, que é a Central de Monitoramento, eu era a única mulher. Com o passar dos anos foram chegando mais e eu venho percebendo que as mulheres aos poucos vêm ganhando mais espaço em todos os setores".
É também na CTTU que atua Taciana Ferreira, diretora-presidente do órgão, responsável pelo monitoramento, controle e fiscalização do trânsito e do transporte na capital pernambucana. "Existe um cenário, nesse ambiente, muito masculino. A predominância, inclusive em cenário nacional, é que a maioria dos presidentes de autarquias de Trânsito e Transporte são homens", pontuou.
À frente da presidência desde 2013, Taciana é a segunda mulher a ocupar o cargo e a que possui a gestão mais longeva. "É preciso que haja ainda um grande avanço nesse sentido. Ainda há um preconceito muito grande em relação às mulheres mas acredito que nós estamos avançando muito, sobretudo por nossas habilidades pessoais".
Políticas de incentivo
Para incentivar a contração de caminhoneiras, a Raça Transportes, sediada no estado de São Paulo e com filial no Recife, implantou uma política que resultou na contratação de seis profissionais. "Nós temos um quadro grande de mulheres no setor administrativo e operacional e fomos em busca de profissionais carreteiras, que ainda não são tantas no mercado, e estamos abertos para que as novas vagas que surjam sejam ocupadas por mulheres", comentou o diretor-presidente da empresa, Faiçal Murad. Segundo a organização, o objetivo é de no futuro ao menos 20% do quadro seja preenchido por caminhoneiras.
Soluções para a mobilidade
A recifense Simony Cesar, eleita pela Forbes Under 30 como destaque no setor de inovação e tecnologia 2020, é fundadora e CEO da NINA, empresa que desenvolve soluções de segurança para a mobilidade e planejamento urbano. A plataforma, que atualmente está em funcionamento em Fortaleza (CE), coleta dados de denúncias de assédio, a partir de aplicativos de mobilidade, e repassa análises ao poder público, que incluem, por exemplo, linha e locais onde houve mais relatos. "A gente não tem uma perspectiva de cidades pensadas por mulheres e criadas principalmente na perspectiva de quem mais usa a cidade em si, que é a população de baixa renda, essa população que usa e acessa à cidade principalmente na mobilidade ativa, que é o a pé, e no transporte público", analisou.
Como destaca a empreendedora, as mulheres na área de tecnologia do transporte enfrentam diferentes desafios. "Se a gente é cobrada em determinada área, pode ter certeza que em tecnologia e transporte a gente é cobrada dez vezes mais, enquanto mulher. E não só por ser mulher, mas por ter todos esses signos que eu acabo carregando: vir da periferia e ser uma mulher não-branca", comentou. "E essa é a grande questão que deve ser debatida: se eu planejar uma cidade para o grupo mais vulnerável, eu consigo transformar uma cidade segura para todo mundo", completou.
Contra o assédio em coletivos
Há três anos, o País conta com a Lei de Importunação Sexual, que tornou crime práticas como toques e “encoxadas”, por exemplo, em ônibus ou metrô. Em Pernambuco, a deputada Simone Santana é autora de duas leis voltadas para a segurança, especialmente das mulheres, no transporte público: "A gente sabe que as mulheres são as maiores vítimas dessa violência urbana, desse assédio, dessa importunação sexual que acontece nos transportes públicos. Então, o que a gente precisa é conscientizar toda sociedade, mas especialmente as mulheres, de que isso é crime e que elas precisam denunciar, porque só assim é que a gente vai inibir esse tipo de atitude”.
Secretário de Desenvolvimento Urbano e Habitação de Pernambuco, Tomé Franca afirmou que o Estado deve adotar, em breve, uma plataforma que auxiliará na prevenção e no combate ao assédio sexual no sistema de transporte público. "Nós estamos trabalhando para a contratação de uma empresa especializada que vai prestar serviço de consultoria em políticas públicas de mobilidade de gênero em um serviço de tecnologia de informação e comunicação", disse.