"Prisão flutuante" em que Reino Unido quer abrigar migrantes gera críticas nas redes sociais
Navio, atracado na Ilha de Portland, tem capacidade para 506 pessoas e é anunciado em site como "veículo de luxo"; governo britânico garante que será destinado apenas a homens
O Bibby Stockholm, o gigantesco navio que mais parece um bloco de apartamentos improvisado do que um transatlântico, ancorou nos últimos dias no porto da ilha de Portland, na costa sul da Inglaterra. A notícia da chegada da embarcação, que o governo britânico pretende usar como acomodação (ou uma "prisão flutuante", como apontaram críticos) de imigrantes irregulares gerou revolta na web.
"O fato disso não ter gerado uma grande revolta internacional só mostra que quase ninguém se importa de verdade com 'direitos humanos'", destacou uma internauta. "Democracia e tal, tudo certo", ironizou um usuário. "Os 'bondosos' ingleses", disse um terceiro, também em tom sarcástico.
El Gobierno británico ha anunciado el uso de la embarcación Bibby Stockholm como alojamiento para migrantes irregulares detenidos en las costas del sur de Inglaterra. pic.twitter.com/LC9wG0Q9AK
— RT en Español (@ActualidadRT) July 21, 2023
O governo de Rishi Sunak se fez de surdo às críticas de organizações humanitárias, que também definem a nova aquisição como uma "prisão flutuante", e se prepara para alojar os primeiros migrantes irregulares nela.
"Vivendo com luxo a bordo". Assim é anunciado o Bibby Stockholm no site da Bibby Marine, responsável pelo navio. A companhia ressalta que a embarcação tem "ventilação natural e conexão wi-fi por toda parte". Além disso, dispõe de academia (com esteiras e pesos); um bar (com "grande seleção de bebidas e muitos lugares para sentar"); um restaurante (com "comida deliciosa e nutritiva); e uma sala de jogos (com alvos de dardos e mesa de bilhar).
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No entanto, mais de 50 organizações humanitárias, como Refugee Council e Asylum Matters and Refugee Action, divulgaram uma carta aberta à Bibby Marine para questionar as condições em que os imigrantes serão alocados no navio. "Os que ficarão contidos na embarcação não são criminosos; eles estão buscando proteção no Reino Unido", diz a carta.
Oficialmente, disseram as organizações, o navio não vai ser usado como prisão. No entanto, detalhes divulgados pelo porto de Portland fazem concluir que "as pessoas serão mantidas em condições de detenção com severas restrições à liberdade de movimento".
De acordo com o porto de Portland, “os requerentes de asilo não terão liberdade para circular pelo porto. Quando estiverem no porto, eles serão mantidos no Bibby Stockholm ou em um complexo seguro adjacente à barcaça". Além disso, a localização remota do porto dificultará o acesso dos imigrantes a comunidades folha da ilha.
Os imigrantes terão apenas 9,10 libras esterlinas para gastar por dia (equivalente a R$ 55, na cotação atual). Com isso, "haverá muito pouco que eles possam fazer e poucos lugares onde possam ir, mesmo quando puderem sair do porto", dizem as organizações.
Na carta, as organizações citam evidências de laços históricos da empresa com o comércio transatlântico de pessoas escravizadas e pedem uma resposta pública sobre as condições análogas à detenção que os imigrantes terão a bordo.
"Acreditamos ainda que a suposta associação histórica de sua empresa com o tráfico de pessoas escravizadas torna ainda mais importante que você reflita profundamente se um contrato que leve à detenção efetiva de pessoas que fogem da guerra e da perseguição é como sua empresa deseja se posicionar em 2023", afirma a carta aberta.
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Um vídeo divulgado no YouTube mostra detalhes do navio.
De propriedade da empresa Bibby Marine Ltda, a estrutura tem capacidade para acomodar 506 pessoas. Downing Street já garantiu que serão apenas homens, escolhidos entre os que chegaram irregularmente à costa sul da Inglaterra após a travessia do Canal da Mancha. Os primeiros cinquenta desembarcarão na cidade de Dorset, onde fica a ilha, nas próximas semanas.
O governo britânico calcula que os novos moradores permanecerão no barco por um período entre três e seis meses. Por enquanto, o porto de Portland fechou um primeiro ano e meio de contrato de atracação, mas os protestos e a preocupação dos moradores da área lançam incertezas sobre o futuro da instalação.
Atualmente, mais de 160 mil pessoas aguardam o processamento de seu pedido de asilo no Reino Unido. O governo mantém cerca de 51 mil em unidades hoteleiras espalhadas por todo o país, a um custo superior a 6 milhões de euros por dia.
O Bibby Stockholm dispõe de 222 quartos duplos, cada um com banheiro, chuveiro, janela para o exterior, televisão e armários. Em teoria, ninguém será retido no navio. Os futuros imigrantes que nela residirem, diz o governo britânico, poderão ir e vir todos os dias sem problemas e visitar a cidade vizinha de Weymouth, embora devam assinar a entrada e saída no livro de registo. O Ministério do Interior até preparou um serviço de ônibus para esse fim.
Como já explicado pela empresa proprietária, com fotografias incluídas, o Bibby Stockholm dispõe de serviço Wi-Fi, refeitório, ginásio, lavandaria e ainda uma sala multiconfessional para orações. Os custos estimados em segurança, saúde e alimentação por dia serão de cerca de 23 mil euros, garante o governo.
"Crueldade moral"
A nova Lei de Imigração Ilegal de Rishi Sunak, que se tornou a pedra de toque do mandato do primeiro-ministro britânico, e em uma luta permanente com organizações humanitárias, a Igreja Anglicana e a Câmara dos Lordes (a Câmara Alta do Parlamento), foi finalmente aprovada na manhã de terça-feira. Downing Street conseguiu derrotar as últimas emendas ao texto apresentadas por muitos lordes — a maioria deles independentes, sem filiação partidária.
Pretendiam abreviar o tempo de detenção de menores em situação irregular desacompanhados dos pais, fortalecer a luta contra a escravidão moderna — que o novo texto enfraquece com suas medidas — e inclusive estender por seis meses o período anterior à deportação dos recém-chegados ao Reino Unido. O governo de Sunak, que fez da luta contra a imigração irregular uma bandeira eleitoral, tem sido inflexível. A nova lei já é uma realidade, embora algumas de suas principais disposições levem tempo para serem aplicadas.
Embora a Justiça britânica tenha confirmado a ilegalidade do plano de deportação para Ruanda (na verdade, segundo a lei, para "um terceiro país seguro"), está pendente um último recurso no Supremo Tribunal. No melhor cenário para os objetivos de Downing Street, os voos podem não começar até pelo menos o final do ano.
A nova lei, descrita como "crueldade moral" pelo arcebispo de Canterbury e chefe da Igreja Anglicana, Justin Welby, elimina a possibilidade de que aqueles que chegam ao Reino Unido de forma irregular — muitos depois de cruzar as águas perigosas do Canal da Mancha — possam iniciar os procedimentos para obter o status legal de refugiado. O governo reserva-se o direito de os deportar imediatamente para o seu país de origem, ou para um terceiro país considerado seguro. Durante o mandato de Boris Johnson, foi fechado um acordo de mais de 150 milhões de euros entre Londres e Kigali para enviar a maior parte dos novos irregulares para Ruanda. Nem um único avião decolou, mas o Executivo de Sunak abraçou o acordo e está determinado a levá-lo adiante.
No ano passado, quase 46 mil pessoas desembarcaram na costa sul da Inglaterra, depois de cruzar o Canal da Mancha. Cinco anos antes, os números anuais não chegavam a mil. Apesar de a dimensão da crise ainda ser muito menor do que a enfrentada pelos países do sul da União Europeia, ela tem sido suficiente para transformar o tema em um dos maiores desafios políticos de Sunak.