Projeto de combate à violência doméstica agora treina barbeiros
A etapa voltada aos barbeiros é ligada à prevenção da violência, levando a conversa sobre machismo e violência
Criado em Mato Grosso do Sul em 2017 e replicado em seis estados, o projeto Mãos Empenhadas, que capacita profissionais de salões de beleza para identificar e ajudar vítimas de violência doméstica, iniciou uma nova etapa com a ampliação para barbearias. "É uma outra conversa para chegar aos homens", afirma a juíza Jacqueline Machado, idealizadora do projeto.
Se no caso dos salões femininos a intenção do projeto é o acolhimento às vítimas, a etapa voltada aos barbeiros é ligada à prevenção da violência, levando a conversa sobre machismo e violência para o lado daqueles que podem estar cometendo agressões.
As duas primeiras turmas de formação foram realizadas no segundo semestre de 2020, de forma virtual, por causa da pandemia do coronavírus.
Entre os temas abordados na apostila do projeto estão as origens do machismo, como ele afeta os homens e a desmistificação de enganos comuns sobre leis de proteção à mulher, como a de que a Lei Maria da Penha seria usada para acusar homens injustamente.
"O Brasil é o 5º país do mundo que mais mata mulheres e cerca de 40% delas morrem pelas mãos de familiares ou pessoas com quem mantiveram relacionamento íntimo. Além disso, frequentemente os homens acreditam estarem sendo acusados injustamente, acreditam não terem cometido qualquer violência contra a vítima, por não terem conhecimento de que determinadas condutas são consideradas violência", diz o material.
Renan Silveira, da Campo Grande Barber Shop, participou da segunda edição do projeto. "Procuraram a gente e achamos muito legal a iniciativa de levar esse tipo de informação para dentro da barbearia, que acaba sendo na maioria das vezes um ambiente machista", disse.
Ele conta que os barbeiros da casa já tinham interesse pelo tema. "O material é legal, mas acho que é muito mais fácil para quem já entende um pouco do assunto. Hoje as pessoas têm preguiça de ler folhetos e afins. Acho que seria interessante algo simples e direto, que desse pra circular nas redes sociais."
Desde 2017, o programa para salões de beleza femininos capacitou 272 profissionais como manicures e cabeleireiras para iniciar conversas sobre violência doméstica com as clientes. O tribunal estima que os 50 salões associados recebam 22 mil clientes por mês.
"O projeto é voltado para a educação, porque ainda tem mulheres que acham que se elas forem embora vão incorrer em crime de abandono do lar. Isso não existe", diz Machado. "No estado, a imensa maioria de feminicídios em 2019 foi de mulheres que nem sequer tinham procurado a Justiça. Precisamos fazer essas mulheres chegarem ao sistema."
O TJ também contabiliza que 63 mulheres relataram casos de violência doméstica após o contato no salão. O número, diz Machado, pode ser maior, já que é possível que haja denúncias que não façam referência ao Mãos Empenhadas.
"Uma cliente começou a chorar na cadeira outro dia. Aí eu vi que a menina que estava atendendo não falou nada, pegou a revistinha e entregou para a moça, e ela levou", conta Andreia Sousa, dona de um salão de beleza em Campo Grande.
Ela é uma das associadas ao programa e levou suas dez funcionárias para receber o treinamento. A "revistinha" a que se refere é uma cartilha criada pelo TJ-MS para explicar a violência doméstica e os locais para a vítima buscar ajuda.
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Sousa conta que, depois da capacitação, as funcionárias conseguiram ajudar uma colega. "Ela entrou depois do treinamento. E as meninas foram conversando com ela e ela conseguiu sair daquele relacionamento que era violento", conta.
O Mãos Empenhadas também foi adotado em São Paulo, Piauí, Pará, Rio Grande do Sul, Paraná e Rio de Janeiro. Já a versão nas barbearias foi replicada em Pernambuco.
O projeto, porém, tem limitações, aponta a advogada feminista Isabela Del Monde. "É preocupante que haja uma transferências do poder público para os indivíduos", afirma. Ela diz que iniciativas do tipo são imbuídas de boa intenção, mas não podem substituir políticas públicas mais robustas de melhoria ao atendimento de vítimas e também de redução dos índices de violência.
Del Monde diz que a busca por atendimento não é suficiente quando o sistema de proteção a essa vítima é deficitário. "Não adianta orientar a mulher a procurar a delegacia se isso não vai funcionar. A resposta precisa ser estrutural, e não pontual."