Quarentena vai levar parte da população à pobreza absoluta, diz voz da oposição na Argentina
Bullrich é presidente do PRO (Proposta Republicana), maior partido de oposição ao governo peronista
Principal voz da oposição hoje na Argentina, a ex-ministra de Segurança Patricia Bullrich, 64, diz que a gestão de Alberto Fernández "está causando danos à imagem do país" ao não resolver a dívida externa e ao não tomar medidas para proteger a economia da recessão prevista para o pós-pandemia.
Bullrich é presidente do PRO (Proposta Republicana), maior partido de oposição ao governo peronista e legenda do ex-presidente Mauricio Macri e do atual chefe de governo da cidade de Buenos Aires, Horacio Rodríguez Larreta, provável pré-candidato presidencial nas eleições de 2023.
Apesar de liderar uma aliança de centro-direita, a Juntos Por el Cambio, Bullrich já foi militante da Juventude Peronista e tinha relações próximas com diversos membros dos Montoneros, guerrilha urbana marxista nos anos 1970. Sua irmã foi casada com o líder deles, Rodolfo Galimberti.
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PERGUNTA - Como a sra. avalia a relação do atual governo da Argentina com o Brasil, comparando com a época da gestão Mauricio Macri (2015-2019)?
PB - Enquanto estivemos no governo, tivemos uma excelente relação com o Brasil, uma relação que fizemos questão de alimentar sempre. O trabalho em conjunto é necessário para a economia e para o controle de fronteiras, entre outras áreas. E isso andou bem. Também fechamos junto ao Brasil o acordo com a União Europeia. Tendo em vista todos os nossos avanços, observar que agora estamos voltando a uma relação zero é muito preocupante.
Dependemos muito do que o Brasil compra da Argentina e também do que vendemos ao Brasil, sem mencionar a produção conjunta no setor automotriz. É muito preocupante que não exista diálogo, principalmente por conta da situação da economia argentina hoje, que não pode se isolar mais, tem de abrir, e isso começa com o Brasil. Era nisso que estávamos trabalhando com o presidente Macri. Colocar a ideologia por cima da realidade concreta é um erro. E, evidentemente, essa situação vai trazer um problema extra para a Argentina.
A Argentina entrou numa quarentena dentro da quarentena, com novas e mais restrições na região metropolitana de Buenos Aires. Como a sra. vê isso?
PB - Com relação ao coronavírus, nós dissemos desde o primeiro dia que, para o PRO, saúde e economia são duas caras de uma mesma moeda. Não se pode deixar a economia em segundo plano. Essa quarentena tão longa vai levar a uma pobreza absoluta de boa parte da população e uma desvalorização dos bens e do capital de todos os argentinos. O governo argentino, na nossa região, é o que menos tem ajudado as empresas nesta crise. Nossos prognósticos estão cada dia piores, e falta também um plano sobre como vamos reativar a economia depois.
Na gestão de Macri, a sra. colocou muita ênfase no controle das fronteiras e na luta contra o narcotráfico. Como vê essa agenda hoje?
PB - Essa foi uma questão em que avançamos bastante, principalmente com o ex-ministro Sergio Moro. Mas hoje vejo o sistema de controle de fronteiras abandonado. Toda a tecnologia na qual investimos parece não estar sendo usada. O governo nacional vem desviando recursos da vigilância de fronteiras para outras prioridades. É um retrocesso muito grande. Além da fronteira, não estamos mais cuidando da luta contra o terrorismo como fazíamos. Hoje a força de segurança nacional está focada no controle policial da quarentena e muito pouco em sua tarefa essencial, que é cuidar da sociedade.
Recentemente alguns episódios na área econômica repercutiram no exterior, entre eles a saída da Latam do país, a tentativa de nacionalização de uma empresa privada, a Vicentín, e a não resolução, por enquanto, da negociação da dívida externa. Isso danifica a imagem da Argentina?
PB - Sim, e muito. O PRO é um partido que crê no respeito à lei, à Constituição, e é fundamental não ficar mudando as regras. O caso Vicentín foi um golpe no coração da credibilidade do país. A saída da Latam também, porque não tentaram ajudar a empresa a continuar aqui. O governo cedeu aos sindicatos e ao desejo de que a Aerolíneas Argentinas tenha o monopólio dos voos no país. Isso já se mostrou muito difícil num país com as dimensões da Argentina. A Aerolíneas Argentinas sozinha não dá conta. É importante a participação de outras empresas no mercado.
Para nós, foi um erro gravíssimo permitir que a Latam fechasse as operações aqui. O governo não quis ter uma negociação razoável para que a empresa pudesse atravessar a crise com algumas acertos salariais aceitáveis. E tudo isso impacta negativamente na negociação da dívida. É muito importante evitar a moratória do país, e casos como Vicentín e Latam não colaboram com nossa imagem junto aos credores.
Num primeiro momento, o PRO e o peronismo trabalharam bem na região metropolitana de Buenos Aires no combate ao coronavírus. Agora começa a haver fricções. Como a sra. vê a situação?
PB - É certo que no começo a coesão foi mais fácil. Mas a situação vem mudando muito, e, com o aumento de casos de coronavírus na região metropolitana, isso tem piorado. Às vezes estamos de acordo com o governo, mas no caso da cidade de Buenos Aires havia atividades que foram reabertas e poderiam continuar. Mas tivemos de recuar por conta do governo.
O PRO se viu envolvido recentemente numa acusação de espionagem e agora haverá um processo penal sobre o caso.
PB - Alberto Fernández e Cristina Kirchner tinham armado um plano de impunidade para os crimes do kirchnerismo desde antes de chegarem ao poder. E parte desse plano é armar processos contra nós, que somos hoje oposição, numa tentativa de igualar supostos delitos nossos àqueles pelos quais o kirchnerismo vem sendo julgado. Acreditamos que existe um "ministério da vingança" armado para organizar processos contra a oposição. Isso é muito grave. Essa causa de espionagem é picaretagem. Não há nada ali que nos incrimine de verdade, e isso deve vir à tona com a investigação.
A sra. crê que Cristina Kirchner tem um plano claro para a área da Justiça? Porque em outros setores do governo ela não parece opinar muito.
PB - Sim, claramente. Acreditamos que sua agenda é realizar uma mudança radical na Justiça argentina, por fora dos marcos constitucionais. E creio que segue o modelo cubano, o de estabelecer o que é delito de opinião, e de favorecer a possibilidade de que qualquer um que opine de forma diferente termine julgado.
Há casos recentes de pessoas e de jornalistas que estão sendo processados por postagens nas redes. A sra. crê que a liberdade de expressão está em risco?
PB - Sim, claramente. A Justiça vem armando processos contra quem usa a palavra "infectadura" [expressão que surgiu a partir da ideia de que a Argentina estaria vivendo uma ditadura imposta por infectologistas], como aconteceu com o ator Juan Acosta. Há denúncias a jornalistas como se fossem espiões. É um passo a mais em relação ao que se fazia no primeiro kirchnerismo [gestão de Néstor Kirchner, de 2003 a 2007]. Se isso continuar, será um retrocesso forte, e nós vamos brigar muito para que não aconteça.