Tirinha da Turma da Mônica com questão sobre meio ambiente foi retirada da prova do Enem de 2020
Questão só foi usada na prova destinada a jovens em cumprmento de medidas socioeducativas
A "censura" sob forma de "leitura crítica" das provas do Enem aconteceu no ano passado. Uma tirinha da Turma da Mônica foi retirada do exame, de acordo com servidores do Inep, por recomendações que surgiram após apreciação do general Carlos Roberto Pinto de Souza, então diretor de Avaliações da Educação Básica do órgão, que morreu de complicações da Covid no início deste ano, e de Camilo Mussi, que era responsável pela diretoria de tecnologia.
Na sala secreta - e sempre dentro dela -, foi deixada uma sugestão para que fosse retirada da prova principal quadrinhos em que um menino indígena aponta para uma cena de árvores cortadas pelo caule, com apenas cotocos deixados para trás, e pergunta para outro colega como os caraíbas, em alusão a homem branco, chamam aquilo. A resposta é: "Progresso".
O item sobre uma polêmica recorrente no governo do presidente Jair Bolsonaro, que recentemente negou a existência de desmatamento na Amazônia, acabou retirado do concurso daquele ano. A questão só foi usada na prova destinada a jovens em cumprmento de medidas socioeducativas, que ficam fora do escrutínio dos que tentam adequar o concurso a posições político-ideológicas do governo.
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É assim que têm ocorrido as interferências no conteúdo das provas do Enem que levaram, nos últimos dias, à debandada de 37 servidores do Inep, responsável pelo Enem, de cargos de relevância do órgão. A maior parte dos que pediram afastamento trabalha na elaboração e na logística do concurso, que é a principal porta de entrada de estudantes brasileiros em universidades públicas do país.
Toda e qualquer interferência em uma questão do Enem - que os técnicos chamam de item porque cada uma delas envolve meses para formulação, testes e análise estatística para aferir se atingiu o grau de complexidade desejado - tem o efeito de desencadear uma operção minuciosa para sua substituição. É que a prova é pensada para ter um conjunto de questões de graus de dificuldade diferentes e capazes de medir competências muito específicas. Um quebra-cabeça feito para testar com eficácia se o candidato tem ou nao condições de ingressar no ensino superior.
Antes de ir para o banco de dados do Inep, cercado de sigillo tão grande quanto o sistema da Receita Federal, a questão é formulada e avaliada por um grupo de professores que são escolhididos por edital público e depois passa por testes de "qualidade", cuja ideia é medir a eficácia dela para testar um conhecimento importante. Para isso, ela ainda é submetida a turmas do fim do Ensino Médio ou do início do curso superior, público semelhante ao que vai tentar o Enem.
Um trajeto que, em 2020, foi interrompido para essa tirinha da Turma da Mônica, que tinha como objetivo verificar se o candidato entendia as implicações que existiam no simples diálogo cheio de ironia entre os dois indiozinhos.
Entre as respostas possíveis, a única certa era a "B", que tratava do conceito de crescimento econômico predatório. Um caso que só pode ser revelado agora porque a questão foi utilizada nas outras provas daquele ano, que não são consideradas as principais, e por isso não será mais utilizada embora tenha voltado para o banco de itens do Inep.
— São ações fora da técnica. A gente fica se perguntando: será que por ser um governo que se considera predatório não quer falar sobre meio ambiente? Mas essa tese não para em pé. A gente não consegue entender as razões dessas interferências — diz um servidor que participou da elaboração da prova de 2020. — Parece aquele ditado de querer ser mais realista do que o rei. O guardinha da esquina vê o discurso do Bolsonaro e quer ajustar a prova a questões que são caras ao presidente.
No Enem de 2020, uma outra questão sobre as diferenças salariais entre o jogador Neymar e a jogadora Marta teria irritado Bolsonaro, a ponto de ter provocado a demissão do presidente do Inep na época, Alexandre Ribeiro Pereira Lopes. Bolsonaro disse que achou "ridícula" a comparação entre os dois atletas e que "o futebol feminino ainda não era uma realidade no país". Ele também atribuiu a desigualdade salarial a problemas da "iniciativa privada". "O que o Neymar ganha por ano todos os times de futebol juntos no Brasil não faturam por ano", chegou a afirmar o presidente. A questão fazia parte da prova de linguagem.
De acordo com outro servidor, dificilmente é feita alteração na questão - em geral, quando há incômodo com perguntas sobre ditadura militar ou questões de gênero, ela precisa ser substituída, o que é previsto, desde que dentro de princípios ténicos, porque faz mal para um banco de itens que tem reduzido de tamanho, ano após ano. Nesses casos, o servidor substitui o item por outro já que os servidores se recusariam a alterar questões aprovadas dentro do procedimento técnico previsto na matriz do Enem.
Desde que Bolsonaro assumiu o cargo, o Inep não cumpriu mais todo o circuito necessário à confecção de novos itens ou questões, o que envolve seleção de professores e pré-testes. A cada ano, estão sendo usadas questões que já constam desse banco e não foram atualizadas, o que é outra grande preocupação dos servidores. Em 2020, além da Turma da Mônica, houve pedido para alterar algumas outras questões, segundo informações de funcionários.