Recorde de casos na Flórida espelha temor de efeitos da pandemia no Sul dos EUA
Na sexta-feira (3), sete estados americanos superaram os próprios recordes diários em contaminações pelo coronavírus
A região Nordeste dos Estados Unidos foi a mais atingida pela primeira onda de casos do coronavírus no país. A cidade de Nova York, por exemplo, chegou a ser considerada, em abril, o epicentro da pandemia no mundo, quando concentrava quase metade dos novos casos diários. Meses depois, a distribuição geográfica da Covid-19 em território americano mudou. Os estados da região Sul que, aparentemente, foram poupados no início da pandemia, hoje concentram os maiores índices de contaminações.
"Os picos anteriores foram semeados por viajantes vindos da China e da Europa. E como muitas viagens internacionais passam pelo Nordeste e pela Costa Oeste, os estados nessas áreas viram um aumento mais intenso nos casos", avalia Taison Bell, professor da divisão de doenças infecciosas e saúde internacional da Universidade da Virgínia.
Para ele, a migração do vírus para a região Sul é resultado de uma combinação entre o relaxamento das medidas de restrição e a adesão inconsistente a práticas de prevenção, como o distanciamento social e o uso de máscaras. "Muitos dos estados do Sul usaram a baixa incidência de Covid-19 como justificativa para retornar rapidamente à vida normal. No entanto, a urgência de reabrir a economia ficou em segundo plano diante da necessidade de continuar a levar o vírus a sério."
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É o caso da Flórida, por exemplo. O estado confirmou, no sábado (4), 11.458 novos casos de coronavírus, depois de dias em que a taxa ficou acima dos 10 mil registros diários. A cifra atinge um recorde que supera as taxas de qualquer país da Europa, mesmo durante os picos da pandemia, e beira 20% do total de casos diários dos EUA. Ron DeSantis, governador do estado, permitiu uma reabertura parcial da Flórida na primeira semana de maio. No final de junho, entretanto, DeSantis recuou e ordenou um novo bloqueio para bares e lugares de entretenimento, que estiveram lotados durante o período de permissão.
No sábado (4), o prefeito do condado de Miami-Dade, o maior do estado, decretou um toque de recolher. Ninguém pode sair de casa entre 22h e 6h. Muitas das praias da Flórida, que estariam tradicionalmente cheias no feriado de 4 de julho, ficaram fechadas e desertas. De acordo com um levantamento do jornal The New York Times, entre os 17 estados da região Sul, apenas Flórida e Texas estão revertendo as medidas de flexibilização da economia.
Segundo estado mais populoso do país, o Texas voltou a fechar os bares no final de junho e reduziu o limite de público dos restaurantes. Arkansas, Carolina do Norte, Delaware, Louisiana e Mississippi pausaram seus cronogramas de reabertura, enquanto Alabama, Carolina do Sul, Geórgia, Maryland, Tennessee, Virgínia e Virgínia Ocidental mantiveram a reabertura gradual. Kentucky, Missouri e Oklahoma retomaram todas as atividades -e vêm registrando aumentos consideráveis no número de casos da Covid-19.
Na sexta-feira (3), sete estados americanos superaram os próprios recordes diários em contaminações pelo coronavírus; cinco deles estão na região Sul. Para o presidente dos EUA, Donald Trump, os aumentos no número de novos casos não têm relação com a reabertura dos estados, e sim com a capacidade de testagem do país. "Casos, Casos, Casos! Se não testássemos tanto e com tanto sucesso, teríamos muito poucos casos. Se você testar 40 milhões de pessoas, terá muitos casos que, sem o teste (como em outros países), não apareceriam todas as noites no Fake Evening News [referência aos telejornais noturnos dos EUA]", escreveu Trump, no Twitter. "De certa forma, nosso tremendo sucesso na testagem dá à mídia fake news o que ela quer, CASOS. Enquanto isso, mortes e toda a importante taxa de mortalidade estão em queda".
A lógica do líder americano, segundo a qual os EUA só estão registrando mais casos porque estão testando mais pessoas, é questionável, diz Olivia Carter-Pokras, professora do departamento de epidemiologia e bioestatística da Universidade de Maryland. "Sim, houve um aumento no número de testes que estão sendo feitos, mas o aumento no número de novos casos não se deve a isso. De fato, se você observar, verá que a porcentagem de resultados positivos aumentou", afirma a epidemiologista.
Dados compilados pela Universidade Johns Hopkins mostram que a capacidade de testagem dos EUA saltou de 100 mil exames diários no final de março para mais de 600 mil nas últimas semanas. Na sexta-feira (3), o país registrou sua maior quantidade de testes realizados em 24 horas, mais de 720 mil. Por outro lado, a porcentagem de testes com resultados positivos teve um pico de 21,9% no início de abril, quando os exames eram mais concentrados nos casos graves, e caiu ao nível mais baixo (4,4%) em meados de junho. A cifra voltou a subir na última semana, chegando a 7,6% no sábado (4).
Os números mostram, porém, um quadro mais delicado na região Sul. Na Flórida, houve um aumento importante na quantidade de testes, e a porcentagem de resultados positivos não para de crescer. Quando o estado bateu seu recorde de casos diários, no sábado, mais de 65 mil testes foram realizados, e 18,1% tiveram resultado positivo para Covid-19.
Para Carter-Pokras, que analisou a linha do tempo das medidas restritivas e de flexibilização nos estados do Sul, o motivo dos aumentos é a precipitação na reabertura. "Flórida e outros estados na mesma situação delicada não seguiram as orientações nacionais sobre como e quando abrir", diz Carter-Pokras. "Eles não levaram isso a sério e abriram cedo demais."
Em seu estado, Maryland, a professora reconhece boas ações por parte das autoridades de saúde, mas não exagera no otimismo. "À medida que a pandemia avança, as pessoas podem se tornar complacentes e relaxar as práticas de segurança. Em nosso estado, estamos nos movendo na direção certa. No entanto, não estamos fora de perigo."
Tanto ela quanto o professor Bell, da Universidade de Virgínia, avaliam negativamente as reações do governo Trump à crise de saúde pública provocada pelo coronavírus. "Fico triste em ver como a vasta experiência do governo federal não foi aproveitada como deveria ser durante essa pandemia", diz Carter-Pokras.
Para Bell, a administração de Trump se envolveu em enganos, subestimou a crise, ignorou orientações de suas próprias agências e deu conselhos perigosos. "A resposta federal foi atroz e é uma vergonha que vai pairar sobre nós quando essa história for recontada", afirma o professor. "Supõe-se que nossos líderes representam o melhor de nós, mas eles estão falhando miseravelmente em cumprir esse padrão". Bell diz que as autoridades também falham em considerar aspectos demográficos para a tomada de decisões na região Sul dos EUA.
De acordo com o último censo americano, 7 dos 10 estados com maior população negra estão no Sul. Juntos, os 17 estados abrigam 58% dos negros dos EUA, historicamente marginalizados e vítimas de um déficit no acesso a serviços essenciais, como o sistema de saúde. "Para ser franco, precisamos começar a se importar", diz o médico. "Deveríamos começar a investir recursos nessas comunidades para garantir que tenhamos testes adequados, procedimentos adequados de isolamento e acesso aos cuidados".
Quando os dados sobre as vítimas do coronavírus nos EUA começaram a ser analisados a partir de recortes sociais e raciais, ficou evidente que a pandemia é ainda mais grave para as minorias. Comunidades negras e de baixa renda concentram casos e mortes de maneira desproporcional. Embora sejam 13% do total da população americana, os negros são 34% dos mortos pela Covid-19, de acordo com dados da Johns Hopkins. "Essa pandemia expôs desigualdades de longa data e uma série de injustiças sociais", afirma Carter-Pokras. "Só podemos esperar que haja vontade política para fazer as mudanças necessárias em nosso sistema de saúde.