Referendo de Putin busca legitimar manobra para manutenção do poder
O absurdo da situação exemplifica o clima político em torno do referendo
No eterno retorno das simbologias políticas, algo de muito errado acontece quando há a conjunção entre Vladimir Putin e bonecos.
Em 2002, o canal NTV, recém-comprado pela gigante energética estatal Gazprom, teve de tirar do ar o popular programa de sátira Kukli (bonecos, em russo).
Putin, então um jovem presidente no segundo ano do mandato, aparentemente não gostava do boneco que o representava no vídeo.
Quase 20 anos depois, à beira do fim de mais um ciclo do putinismo, foi a vez de uma coleção de bonequinhos do grupo ativista Vesna (primavera).
No domingo passado (21), o grupo espalhou Pokémons, Trolls e Pequenos Pôneis por marcos de São Petersburgo.
Fotografou-os com minicartazes protestando contra o referendo que irá definir se Putin poderá ficar no poder após 2024, quando expira o que hoje seria seu último mandato legal.
"Esse plebiscito [o referendo] é um brinquedo para nós", dizia um dos textos, sobre a votação de quarta-feira (1º).
Duas décadas depois, contudo, a reação foi mais dura do que um telefonema chateado de um burocrata do Kremlin.
"A polícia foi até a minha casa para saber qual minha filiação civil, partidária", contou à rádio Eco de Moscou, do mesmo grupo do qual a NTV foi comprada, a ativista Sonia Uliacheva.
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O absurdo da situação exemplifica o clima político em torno do referendo, bolado após o Parlamento da Rússia e a Corte Constitucional (o Supremo local) aprovarem o plano delineado por Putin em janeiro deste ano.
O pacote, que altera 14 pontos da Carta modificada pela última vez em 1993, tem um pouco de tudo. A começar por uma série de populismos, como a indexação à inflação de benefícios e aposentadorias.
A coisa começa a tomar rosto com o poder de intervenção no Judiciário, de resto já alinhado ao Kremlin. As emendas permitem a Putin sugerir a demissão de juízes, além de cortar a Corte Constitucional de 19 para 11 membros.
Os valores do conservadorismo putinista, que os marqueteiros do poder definem como o senso comum do russo médio, são entronizados.
Casamento, só de homem com mulher –gays já não podem se unir legalmente no país, de todo modo. A história russa é sagrada, na versão triunfalista vigente, é claro. E a pátria teme a Deus, um agrado à Igreja Ortodoxa, parceira política do Kremlin.
Mas tudo isso apenas escamoteia o desígnio maior: a permanência de Putin e de seu grupo no poder.
No Kremlin desde que virou premiê em 1999, o presidente buscou dar verniz legalista a seus atos. Putin não mudou a Constituição em 2007 para ser facilmente reeleito uma segunda vez em sequência, preferindo indicar um preposto.
Assumiu o cargo de premiê do governo do pupilo Dmitri Medvedev, que hoje está na cadeira que o chefe ocupou de 2008 a 2012.
Assim, foi incluída no rol de emendas uma limitação a dois termos para uma pessoa na Presidência. E, "en passant", a definição de que, como a regra muda, é zerada a contagem para quem está no cargo.
Putin, 67, poderá assim disputar o pleito de 2024 e o de 2030, saindo do Kremlin daqui a 16 anos. Em 2028, se estiver no poder, ultrapassa Josef Stálin como líder mais longevo da história moderna do país.
Antes de qualquer coisa, ele precisa que a mudança seja referendada pelo povo no voto, o tal lustre democrático.
Aí entra a polícia no apartamento de Sonia e o cerco aos críticos. "Isso aqui não é uma ditadura, mas o clima é ditatorial, opressivo", diz o cientista político Dmitri Antonenko, de Moscou.
Para ele, as denúncias de pressões sobre servidores públicos para votar e a suspeita de que a votação antecipada, iniciada na quinta (25), possa ser fraudada são vistas com apatia pela população.
Pesquisa do centro independente Levada aponta que 44% apoiam as mudanças, ante 32% contrários e 24% incertos.
Só que o Levada ouve a todos. O centro estatal VTsIOM perguntou só aos que vão votar com certeza, e aí a aprovação sobe a 61%, e a rejeição cai a 22%, com 17% de indecisos.
Para o esquema de poder de Putin, paradoxalmente, a popularidade é central. E ela anda no nível mais baixo de sua vida pública, 59%, segundo o Levada. Assim, o comparecimento alto é vital. O Kremlin quer no mínimo repetir os 67% da reeleição de 2018.
Daí o pedido da oposição para o boicote, liderado por figuras como o blogueiro Alexei Navalni. Se a abstenção for de 50%, a votação é invalidada.
Como não há os usualmente impopulares rivais de Putin para votar, o "não" galvanizou quase todo o campo adversário do Kremlin. Opositores alimentam a esperança de que seja possível quebrar a apatia e dar um recado. Isso enseja, claro, temor de manipulação.
Segundo o grupo Golos (vozes), especializado em transparência, a possibilidade de coletar votos na rua, para evitar aglomerações na pandemia, é um convite a fraudes.
O novo coronavírus já havia obrigado o adiamento da votação, marcada inicialmente para o dia 22 de abril.
Já um repórter do canal independente Dojd (chuva) conseguiu votar online e também numa seção eleitoral.
Além disso, a Rússia relaxou aos poucos a quarentena da Covid-19 no mês que antecedeu o referendo, mesmo sendo o terceiro país com mais casos da doença no mundo.
Na quarta (24), Putin comandou um grandioso desfile pelos 75 anos da vitória na Segunda Guerra Mundial, tema caro a qualquer russo.
Em Moscou, as quatro operadoras de celular enviaram mensagens prometendo um sorteio de prêmios, ofertados por empresas amigas do Kremlin, para quem for votar.
Com a provável vitória de Putin, outras questões se colocam. Observadores sugerem que o russo só quis tirar pressão sobre seus ombros, já que boatos sucessórios o acompanham desde 2018.
"Se isso [a mudança legal] não acontecer, em cerca de dois anos as pessoas vão começar a olhar em volta atrás de um sucessor. Temos de trabalhar", disse Putin à agência Tass, na semana passada.
Segundo essa lógica, Putin ganharia tempo, até porque não tem nenhum herdeiro óbvio, apenas uma coleção de príncipes rivais na sua corte.
Como um czar, figura metafórica que o acompanha, ele tenta se manter acima das disputas. O fato é que ninguém sabe o que ele pensa, e analistas veem um presidente mais tático, decidindo ao sabor da circunstância, do que estratégico, mirando o longo prazo.
Certeza, apenas a dos desafios à frente. O mercado do petróleo, vital para a economia russa, estabilizou-se de forma bastante precária após a quebra decorrente da pandemia.
O Sars-CoV-2 acrescentou dificuldades. A economia deve cair até 5,5% neste ano, após sair da recessão de 2015-16 de forma titubeante. O poder de compra real do russo, que quase quintuplicou na era Putin e ajuda a explicar seu sucesso, toma tombos seguidos.
A impressão que ele deixou até aqui foi a de estar a reboque da Covid-19. Como outros líderes personalistas, ele inicialmente minimizou a crise.
Isso contribuiu para tornar o referendo um plebiscito sobre o presidente. "Da minha parte, espero ganhar uma batedeira depois de votar", brinca Antonenko. Bonecos não fazem parte da promoção.