Resort do tráfico: interferência de políticos teria cancelado primeira operação para demolir imóvel
Imóvel foi colocado abaixo 15 meses depois de ação planejada
Um verdadeiro oásis no Complexo de Israel, na Zona Norte do Rio, foi destruído pela polícia no início desta semana. De acordo com a investigação, o resort de luxo, vizinho de casas simples em Parada de Lucas, pertencia a Álvaro Malaquias Santa Rosa, o Peixão, um dos criminosos mais procurados do estado. A demolição desse símbolo de ostentação do crime, no entanto, poderia ter ocorrido 15 meses antes, não fossem interferências políticas e vazamentos de informações sigilosas, segundo fontes dos órgãos envolvidos na ofensiva contra o traficante. A operação para pôr abaixo o imóvel de Peixão — que acumula 79 anotações criminais e espalha terror no Rio — foi cancelada ao menos duas vezes.
Pelo menos quatro fontes de diferentes órgãos que planejavam a demolição do resort, ouvidas pelo GLOBO, afirmaram que os parlamentares supostamente envolvidos no cancelamento da operação marcada para dezembro de 2023 eram o deputado estadual Roosevelt Barreto Barcelos, conhecido como Val Ceasa (PRD), e o ex-vereador Ulisses Marins (União).
De acordo com os relatos, ambos chegaram a visitar o 16º BPM (Olaria) para pedir que o imóvel não fosse derrubado, alegando que no local funcionava um suposto projeto social. Procurado, Marins não quis se pronunciar. Val Ceasa negou ter ido ao batalhão fazer esse pedido. Em nota, no entanto, o deputado afirmou ser contra a demolição do resort. “Quando o vagabundo coloca armamento ou droga dentro da escola, não pode ir lá e derrubar a escola”, escreveu.
MP estava na negociação
As negociações para a destruição do resort ocorriam em reuniões a portas fechadas entre a Polícia Militar, a prefeitura do Rio e o Ministério Público do Rio (MPRJ) desde 29 de novembro de 2023. Com as tratativas, a operação foi marcada para 14 de dezembro daquele ano. No entanto, segundo um relatório interno da Secretaria municipal de Ordem Pública do Rio (Seop), além do vazamento dos planos, “alguns deputados e vereadores” procuraram o Comando da Polícia Militar para informar que “os referidos imóveis eram utilizados para atividades de assistência a idosos e crianças”.
— Entre a definição e a execução, a operação foi cancelada, sob a alegação de que no local funcionava uma espécie de projeto social. A informação que tivemos à época foi que houve uma solicitação de Val Ceasa e Ulisses Marins junto ao comando da corporação para não demolir o local — afirmou uma fonte que não quis se identificar.
Segundo o Ministério Público, na época, a informação sobre o suposto projeto social foi recebida “sem que tivesse sido apurado de que forma as notícias acerca da demolição administrativa — até então sigilosas — chegaram ao conhecimento dos parlamentares”. Em nota, o órgão afirmou que, “diante da notícia de possível conduta ilícita, foi determinado o envio do caso à Procuradoria-Geral da Justiça (PGJ) para conhecimento e apuração”.
Após essa informação chegar ao MP, foi expedido um ofício à Polícia Militar solicitando diligências para verificar a real destinação do imóvel. Ainda em dezembro, a PM esteve no local e encontrou uma faixa indicando o funcionamento de um projeto que exibia os nomes dos dois políticos e da deputada federal Dani Cunha (União). Durante as diligências, os agentes identificaram ainda outro espaço atribuído à facção, chamado Colônia de Férias do Projeto de Deus Kids.
Projetos sem cadastro
Na ocasião, a Secretaria municipal de Assistência Social foi consultada sobre ambos os projetos e afirmou que nenhum deles tinha cadastro oficial. A informação sobre a placa com os nomes dos parlamentares só se tornou pública em outubro de 2024, quando suspeitas de que Peixão teria passado a noite no imóvel levaram as polícias Civil e Militar a retornarem ao local. Os agentes filmaram a faixa no muro, que indicava que o projeto era supostamente realizado pelos três políticos. Embora o nome de Dani Cunha estivesse estampado na placa, ela não foi citada pelas fontes como envolvida no pedido para suspender a demolição. A deputada disse ao GLOBO que não tem qualquer parceria política com os outros parlamentares.
A influência política de Val Ceasa e Marins na região dominada por Peixão se confirma nas urnas. Levantamento feito pelo GLOBO nos locais de votação em Vigário Geral, Cordovil, Parada de Lucas e Brás de Pina, áreas abrangidas pelo Complexo de Israel, nos pleitos de 2024 e 2022, mostra que os dois são invariavelmente os campeões de votação.
No último pleito, mesmo sem conseguir se reeleger para o posto de vereador, que ocupava havia dois mandados, Marins apareceu como mais votado em 22 dos 32 pontos consultados. Dos seus 17.858 votos, aproximadamente dez mil foram de zonas eleitoras localizadas na região.
Campeão de votos
Na eleição de 2022, Val Ceasa também ficou no topo do ranking de votos nas seções da região, vencendo em 30 dos 33 pontos analisados. Mesmo naquelas em que não ganhou, sua performance foi muito boa, ficando sempre entre os três políticos mais votados.
Em setembro de 2024, seu nome apareceu ao lado ao do de Peixão em pichações em muros do 16º BPM, na Rua Paranapanema, e do Centro de Fisiatria e Reabilitação da PM, na Rua Paranhos, em Olaria. As mesmas inscrições, exibindo ainda a sigla TCP, em referência à facção criminosa, foram feitas também nas paredes de um supermercado da Penha. O parlamentar atribuiu as citações aos seus opositores.
Com os entraves, as tratativas para a demolição do imóvel só foram retomadas em 16 de outubro de 2024, em uma nova reunião entre o MPRJ e a prefeitura do Rio. A operação, que contaria com o apoio da PM, foi agendada para 29 de outubro. Entretanto, na semana anterior, uma ação policial na região terminou com três pessoas mortas por balas perdidas. Na época, as forças de segurança declararam que encontraram uma resistência acima do esperado. Por conta disso, a operação foi novamente cancelada.
Após os dois cancelamentos, a demolição do resort foi remarcada para março deste ano. A prefeitura do Rio e a Polícia Civil decidiram que a operação poderia ser realizada no último dia 11. Segundo o relatório interno da Seop, um dia antes, um delegado entrou em contato para informar que “em hipótese alguma deveria haver a participação de órgãos da prefeitura na operação anteriormente planejada”. O documento da Seop aponta que houve mobilização de equipamentos, máquinas e operários para a ação, mas que eles não foram empregados. Ainda assim, a operação ocorreu, e a demolição foi concluída.
Em nota, a Seop afirmou que “esteve integralmente preparada para a execução da operação”, mas que foi avisada na véspera que “não estaria incluída na operação”.
A Polícia Civil informou que “não houve necessidade de uso dos equipamentos da Seop”. Além disso, a corporação explicou que, para não expor a equipe da prefeitura ao risco, “o secretário Felipe Curi decidiu não incluí-la no planejamento, deixando essa atribuição para os agentes de segurança pública”.
O MPRJ não informou se há uma investigação em andamento para apurar o suposto envolvimento dos parlamentares neste caso, mas que encaminhou as informações do vazamento ao procurador-geral de Justiça.