Logo Folha de Pernambuco

Covid-19

Saiba onde estão os maiores desertos vacinais do Brasil

São Felix do Xingu, no Pará, tem o menor percentual de população vacinada do Brasil, 15,5% com primeira dose, situação que se mantém desde novembro.   

VacinaçãoVacinação - Foto: Divulgação/Prefeitura de Paulista

A previsão do tempo hoje em São Felix do Xingu, no Pará, é de tempestade. Nada fora do padrão para a região. Anomalia é outro tipo de tempestade estacionada lá desde o ano passado: o da baixa cobertura vacinal, retrato da desigualdade no acesso à imunização contra a Covid-19 no Brasil. 

O município é o com menor percentual de população vacinada do Brasil, 15,5% com primeira dose, situação que se mantém desde novembro.   

É um microcosmo da desigualdade vacinal, cujo epicentro é a Amazônia Legal. Num momento em que estados do Centro-Sul avançam na vacinação de crianças e no reforço e já se fala até de quarta dose, estão na Amazônia Legal nove dos dez municípios com menor percentual de aplicação da primeira dose do Brasil, mostra um levantamento feito pelo Globo. 

O levantamento se baseou em informações dos 5.570 municípios mais o Distrito Federal compiladas pelo Observatório da Covid-19, da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), em 6 de fevereiro, a partir da base de dados do Ministério da Saúde.  
 

A tempestade perfeita é gerada pela combinação de falta de planejamento nacional para distribuição e operacionalização da aplicação das vacinas em regiões de população dispersa e acesso historicamente difícil, falta de campanhas de informação e negacionismo. 

O resultado é a criação de desertos vacinais, onde a população desprotegida alimenta bolsões para perpetuação da pandemia, surtos e abre caminho para o surgimento de novas variantes do coronavírus.  

O denominador comum de todos os municípios com baixa vacinação é o baixo IDH, além dos fatores já mencionados.   

— São lugares quase sempre remotos, mas a Covid-19 chegou em todos eles. Então, a vacina tem que chegar. Cada município tem suas peculiaridades, em alguns as falhas operacionais são mais importantes, em outros o negacionismo antivacina pesa mais — afirma Diego Xavier, pesquisador do Observatório Covid-19/Fiocruz. 

Numa Nota Técnica de dezembro do Observatório da Covid-19/Fiocruz, portanto, antes do apagão de dados do Ministério da Saúde, a Região Norte já figurava como a menos vacinada do Brasil. A nota mostrava que só 16% dos municípios brasileiros tinham vacinação com esquema completo acima de 80%. No Sul do país, 30% dos municípios apresentam mais de 80% da população com esquema de vacinação completo, na região Sudeste 27,2%, no Centro-Oeste 11,8%, no Nordeste 2,7% dos municípios e na Região Norte apenas 1,1%.   

Diego Xavier diz que desde então a situação pouco mudou e a tendência continua a mesma.  São Paulo tem o maior percentual de população vacinada, 85% dos habitantes receberam a primeira dose, 80% a segunda e 35% foram imunizados com a terceira dose, segundo boletim da Fiocruz. Já o Amapá está no fim da fila. Tem o menor percentual de vacinação com a primeira dose (58,9%), só 42,9% com segunda dose e pífios 5,1%, com a terceira.  

Xavier acrescenta que dezembro de 2021 e janeiro de 2022 foram os meses com a menor quantidade de doses enviadas pelo Ministério da Saúde, superando apenas os dois primeiros meses de imunização desde o início da campanha.  

— Temos padrões de vacinação da Europa e da África dentro do Brasil — diz Xavier.  

A epidemiologista Carla Domingues, que esteve à frente do Programa Nacional de Imunizações (PNI) por oito anos (2011-2019), considera preponderantes para a criação de desertos vacinais a falta de planejamento do Ministério da Saúde, que não organizou a distribuição de imunizantes de acordo com as necessidades regionais, a falta de informação qualificada oficial para a população e o negacionismo do governo federal, que amplificou o movimento antivacina.  

— A falta de comunicação oficial deixou muita gente apavorada, com um medo infundado que jamais existiu. E, pior, o Ministério da Saúde, ao abrir as portas para o movimento antivacina, empoderou o discurso negacionista e enfraqueceu a proteção da população contra a Covid-19. Isso é um estrago de impacto de longo prazo para a saúde pública. Não há boletins oficiais, não há meta. Ao contrário, há desinformação oficial — salienta Domingues.  

São Félix do Xingu costuma ser mais conhecida pela combinação explosiva de pecuária e desmatamento. Tem o maior rebanho bovino do país, estimado em 2,4 milhões de cabeças. E, não por coincidência, é o município brasileiro que mais emite gases do efeito estufa, segundo o Sistema de Estimativas de Emissões e Remoções de Gases de Efeito Estufa (SEEG), do Observatório do Clima.  

 Em sua maior parte, emissões decorrentes do desmatamento e da pecuária, espalhados por um território de 84.212,903 Km2, — é o sexto maior município do Brasil em área. Mas seus 135.732 habitantes estão dispersos numa das menores densidades demográficas do país, de apenas 1,08 hab/km2. Dois terços deles são indígenas, que vivem em aldeias onde a Covid-19 grassa e a vacina não alcança.  

— Infelizmente, é uma situação dramática. O gado está vacinado, protegido contra a febre aftosa. A população humana, não. É o retrato perfeito da desigualdade. A população indígena, quilombola e ribeirinha era grupo prioritário, mas isso nunca passou de ficção. Não houve planejamento e empenho das autoridades, principalmente federais. Ao contrário. Primeira dose na casa dos 15% é o atestado do descaso com a saúde da população — destaca a sanitarista Ligia Bahia, da Universidade Federal do Rio de Janeiro.  

Evelin Plácido, coordenadora da área técnica de imunização do Projeto Xingu, da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP) e presidente da regional São Paulo da Sociedade Brasileira de Imunização, afirma que aldeias inteiras e profissionais de saúde estão com Covid-19, o que dificulta ainda mais uma situação que já era grave.  

Plácido enfatiza que não houve planejamento na distribuição e se enviou em barcos sem refrigeração a vacina da Pfizer que precisa de uma cadeia fria delicada. Foram distribuídos refrigeradores solares pelo território, mas os barcos, muitas vezes, não têm nem geladeira de isopor.  

— A vacina precisa viajar por até 15 dias em barcos precários, não há equipes suficientes, os poucos profissionais que estão lá estão sobrecarregados e quando chegam às aldeias muitas vezes ainda enfrentam o negacionismo de pastores de algumas denominações neopentecostais. Dizem que ‘é a Besta que está na vacina’ — frisa Plácido.  

Ela lembra que existia algum negacionismo em 2009, na ocasião da vacinação contra a gripe H1N1, mas ela foi vencida com o apoio das autoridades de saúde. Hoje esse apoio desapareceu. Na época, pastores diziam aos indígenas que eles virariam porcos se tomassem a vacina. Com a Covid-19, o bicho, a exemplo do que afirmou o presidente Jair Bolsonaro, mudou para jacaré.  

O negacionismo evangélico ganhou força ao passo que a assistência à saúde de indígenas e ribeirinhos diminuiu.  

— Oferecer toda a infraestrutura fluvial, aérea e terrestre coube aos municípios, que já não a tinham antes e agora então têm menos ainda. A Covid-19 escancarou e agravou um problema que já existia — diz Plácido.  

Antônio Eduardo Cerqueira de Oliveira, secretário executivo do Conselho Missionário Indígena (Cimi), observa que há muitas aldeias não vacinadas, não apenas na região do Araguaia-Xingu, mas em todo o país. Segundo ele, a situação só no está pior porque agentes de saúde indígena têm se desdobrado para ir às aldeias esclarecer os povos indígenas e vaciná-los.   

— Temos um problema muito grave que é o risco de a Covid-19 dizimar povos isolados. Eles podem desaparecer com um surto e nada é feito para evitar — adverte Oliveira.  

Há ainda a questão de infraestrutura para o lançamento de dados, acrescenta Xavier. Muitos municípios não lançam adequadamente as informações nas bases de dados do SUS.   

— Porém, todas as questões têm solução. Mas não se vê movimentação para isso — Xavier.  

Procurada, a Secretaria Municipal de Saúde de São Félix do Xingu não respondeu aos pedidos de entrevista do Globo.  

Veja também

Hospitais de Gaza em risco por falta de combustível
Gaza

Hospitais de Gaza em risco por falta de combustível

Pentágono diz que tropas norte-coreanas na Rússia entrarão "logo" em combate contra Ucrânia
Combate

Pentágono diz que tropas norte-coreanas na Rússia entrarão "logo" em combate contra Ucrânia

Newsletter