Segurança dá a Nayib Bukele sua "democracia de partido único" em El Salvador
Sem resultados oficiais, presidente se autodeclarou reeleito ainda no domingo, após governo marcado por política de enfrentamento com gangues, encarceramento e denúncias de violações
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Dois dias depois do fechamento das urnas e da declaração da vitória de Nayib Bukele na eleição presidencial de El Salvador, as autoridades locais ainda não tinham divulgado ontem uma informação importante: os resultados finais da votação, que supostamente deu ao presidente reeleito mais de 80% dos votos e consolidou o comando de seu partido com um controle quase total do Parlamento. A vitória, que não é contestada pela oposição, é creditada em grande parte à política extrema de segurança em seu primeiro mandato, que aliou repressão, encarceramento em massa e, segundo críticos, acordos com as mesmas organizações criminosas que por décadas aterrorizaram a população.
Na prática, ele conseguiu reduzir drasticamente índices de crimes violentos — especialmente homicídios e extorsões — e fez crescer em proporção inversa seu apoio popular, sobretudo entre os mais pobres, principais vítimas da violência, mas também principais alvos da repressão. Em 2016, El Salvador era um dos países mais violento do Hemisfério Ocidental, com uma taxa de homicídios de 84,1 por 100 mil, enquanto em 2023, despencou para 2,4 por 100 mil, comparável à do Canadá.
Em reportagem do New York Times semana passada, a mãe de um jovem desaparecido desde abril de 2022 lamenta não saber notícias dele, mas mesmo assim demonstra apreço por Bukele: para ela, o presidente “fez tudo para fazer um país melhor”, e “se alguns de nós sofrem as consequências, essas coisas acontecem”.
— Creio que às vezes as pessoas fora de El Salvador não reconhecem o nível de opressão enfrentado nos últimos anos, quando as gangues controlavam a vida de milhares de pessoas. Não foi simplesmente uma melhora das condições de segurança que Bukele conseguiu, mas, sim, mudar as condições de vida da maioria do país — disse ao GLOBO Renata Segura, vice-diretora para América Latina do centro de estudos International Crisis Group. — Então, quando vemos pessoas como essa mulher aceitando que houve abusos contra seu filho, e mesmo assim votando nele [Bukele], é um sinal do quão grave era o problema, e de como os salvadorenhos não acreditavam em governos anteriores.
Um ponto central da política de Bukele, de 42 anos, é o encarceramento em massa. Desde o estouro de uma onda de violência promovida pelas gangues, em 2022, estima-se que 75 mil pessoas tenham sido presas — quase 1,2% dos 6,5 milhões de habitantes do país — incluindo em uma nova megaprisão, capaz de abrigar 40 mil detentos. Cerca de 7 mil foram posteriormente libertas, mas milhares seguem detidas sem o devido processo legal, como apontam especialistas e organizações de defesa dos direitos humanos.
— El Salvador de Bukele tem cerca de 2% da população presa, é um nível assustador, o maior do mundo na relação entre pessoas presas e pessoas soltas. Essa situação, que é a base da política de “mano dura” de Bukele, é o extremo de uma linha que vem sendo praticada não só em El Salvador, mas em outros países da região há décadas — apontou ao GLOBO Thiago Rodrigues, do Instituto de Estudos Estratégicos da UFF.
Para o especialista, essa política, aliada ao enfrentamento das gangues, pode trazer resultados a curto prazo, mas encontra limites na falta de ações para combater as raízes da violência, como a desigualdade extrema. Segundo o Escritório da ONU para a Coordenação de Assuntos Humanitários, 27% dos salvadorenhos vivem abaixo da linha da pobreza.
— Construir presídios e matar suspeitos de envolvimento com crime organizado não melhora a situação socioeconômica de ninguém. Então é possível que o grande sucesso eleitoral de Bukele agora tenha um tempo contado, também à medida em que o crime organizado se reorganize no país — disse Rodrigues.
Ainda na noite de domingo, quando a contagem oficial não havia chegado sequer a 50%, Bukele afirmou que havia vencido “com mais de 85% dos votos”, e que seu partido, o Novas Ideias, conquistou “no mínimo” 58 das 60 cadeiras na Assembleia Nacional. Segundo pesquisa de boca de urna, ele teve 87% dos votos.
— Hoje El Salvador quebrou todos os recordes de todas as democracias em toda a História do mundo — disse ele em discurso no domingo. — Seria a primeira vez que um partido único existiria em um país com sistema totalmente democrático. Toda a oposição junta foi pulverizada.
Além da lentidão da contagem, houve denúncias de falta de papel para imprimir as atas e até erros do sistema que duplicaram ou triplicaram os votos para o partido governista. A Justiça Eleitoral não se pronunciou, tampouco deu um prazo para declarar oficialmente os vencedores.
Em meio às críticas, os poucos opositores que ainda se expressam abertamente contra o presidente lembraram que todo o processo eleitoral foi marcado por interferências do governo. Em 2021, Bukele se valeu da maioria absoluta no Parlamento para fazer mudanças na Suprema Corte e garantir que poderia se reeleger, algo não previsto na Constituição.
Em 2023, o Congresso aprovou a redução do número de cadeiras, de 84 para 60, e um corte ainda maior do número de municípios, de 262 para 44. Para a oposição, a medida reduziu drasticamente a participação de siglas menores e pavimentou o caminho para a vitória de Bukele e para seu controle total do Legislativo.
Controle dos Poderes
Bukele está longe de ser um fenômeno isolado na América Latina. Em uma região que ostenta índices elevados de crimes violentos, a segurança pública sempre figura entre os temas principais de campanhas para todos os níveis de governo. Recentemente, candidatos com linhas similares às de Bukele tentaram se eleger na Guatemala e no Equador.
— Nós vemos alguns países na América Latina flertando com a ideia de um programa de segurança ao estilo de Bukele. Mas isso funcionou bem em El Salvador porque ele controla os três Poderes — afirmou Renata Segura, do International Crisis Group.
Recentemente, em conversa no Twitter Spaces, o presidente disse que não planejava buscar a reeleição indefinida, mas seu candidato a vice, Felix Ulloa, declarou mais de uma vez que o povo deseja Bukele como “presidente eterno”.
Em artigo no jornal espanhol El País, Carlos Dada, fundador do jornal salvadorenho independente El Faro, afirma que Bukele está incrementando as Forças Armadas — para ele, sinal de que o terreno para uma eventual perpetuação no poder está sendo preparado.
— Não acho que estejamos caminhando para uma ditadura clássica, porque muitas pessoas votaram nesse projeto, e acho difícil imaginar que os salvadorenhos se cansem de Bukele agora, talvez ele se canse de El Salvador primeiro — apontou Renata Segura. — Mas precisamos observar como as instituições sobreviverão a esse novo mandato de Bukele, ainda mais depois que ele apontou que o que considera ser democracia é a voz do povo, não a defesa da Constituição ou da institucionalidade em El Salvador.