Setembro amarelo: pessoas negras são as maiores vítimas de suicídio no Brasil; veja como pedir ajuda
Especialistas apontam que o problema de saúde pública tem origem em questões psíquicas mal trabalhadas na sociedade
O dia 10 de setembro é o Dia Mundial de Prevenção ao Suicídio. A data é lembrada junto à campanha Setembro Amarelo, a maior movimentação de conscientização contra estigmas, estereótipos e desinformação sobre o assunto que existe.
Mais de 700 mil pessoas tiram a própria vida anualmente, em todo o planeta, de acordo com uma pesquisa divulgada pela Organização Mundial de Saúde (OMS), em 2019. Os dados não incluem, porém, casos subnotificados, que, segundo estimativas, podem chegar a mais de um milhão.
Em 2021, um grupo de trabalho da Câmara dos Deputados voltado a estudar o aumento de suicídio, automutilação e problemas psicológicos entre os jovens no Brasil, revelou que acontece uma morte por suicídio a cada 45 minutos, mas que, para cada morte, acontecem outras 20 tentativas.
No País, as maiores vítimas são jovens negros. Um levantamento do Ministério da Saúde revelou que seis a cada 10 pessoas entre 10 e 29 anos que cometem suicídio são negros (autodeclarados pretos ou pardos).
Para se ter uma noção da gravidade do assunto diante do recorte racial, em 2018, a pasta identificou que, nessa mesma faixa etária, a taxa de suicídio por jovens negros e do sexo masculino é 45% maior do que entre brancos.
A principal causa da disparidade, apontada por especialistas, é o racismo.
A relação entre o racismo e o suicídio de pessoas negras no Brasil
À Folha de Pernambuco, a educadora e doutoranda em Sociologia pela UFPE, Hallana de Carvalho apontou que, na análise sociológica do sofrimento psíquico, entende-se que alguns problemas que afetam a saúde de determinados grupos são oriundos de questões sociais não resolvidas.
“As desigualdades, violências e falta de acesso a direitos básicos e fundamentais são fatores que desencadeiam processos de adoecimento mental”, diz Hallana, que lembra, ainda, que mesmo após a abolição da escravatura, a população negra não foi inserida adequadamente na sociedade.
Mais tarde, durante o desenvolvimento do capitalismo industrial no País, mais uma vez essas pessoas precisaram se adaptar, ocupando subempregos e formando as primeiras periferias dos grandes centros urbanos.
Para Hallana, que cita a obra “Tornar-se negro”, de Neusa Santos Souza, o sofrimento psicológico da população negra tem origem em um “sistema ideológico, estético, político, econômico baseado na brancura”, que afetam diretamente a autoestima e identidade dessa população.
“Não é por acaso que, infelizmente, a população negra está presente, de forma majoritária, nas estatísticas ruins, de encarceramento, letalidade por conta da violência policial, desemprego, morte por doenças crônicas, etc”, ressalta a socióloga.
A falta de cuidados com a saúde mental
“O racismo é uma grande lacuna aberta na vida de toda comunidade racializada do Brasil. Ele faz com que as crianças negras se desenvolvam e se tornem adultos sob a frustração, no sentido de terem sido retirado a possibilidade de sonhar”, é o que explica o psicólogo Caio Ferreira em entrevista à Folha de Pernambuco.
Sentimentos como amor, carinho e cuidado não são sempre estimulados, e juntamente a isso, o racismo, muitas vezes, acontece de forma velada, o que faz com que os problemas com a autoimagem não sejam percebidos e tratados com facilidade.
“É um processo que se dá por meio de uma reconstrução de uma autoimagem, e que é muito doloroso. Muitas pessoas chegam em situação de adoecimento, com ansiedade e depressão”, e consequentemente, são muito afetadas pelo suicídio.
Para Hallana, é necessário haver o rompimento da sociedade com o racismo institucional. “A urgência do reconhecimento do racismo no exercício da clínica precisa ser feito, tanto na formação de profissionais quanto nos demais espaços de promoção de saúde mental”, diz.
Recorte de gênero
“Quando a gente fala da construção e constituição do homem negro, especialmente do jovem negro, a gente está falando do homem provedor, daquele estereótipo do ‘negrão’, que tem que dar conta de muita coisa, mas que é muito forte e que não tem muita possibilidade do pensar”, diz Caio. “Ele tem que sustentar a casa, trabalhar desde cedo, e ele não tem referências de outras possibilidades para pensar um pouco esse sonhar, essa subjetivação”, completa.
Atrelado à alta produtividade, homens negros sofrem a pressão de terem que performar uma masculinidade sempre exacerbada, de forma que não sobre espaço para falar sobre sentimentos e frustrações. “E quanto menos se fala, e não se elabora, algumas questões tangentes à vida e ao suicídio, maior é a chance dele ser cometido (...) e isso é uma característica velada do racismo”, elabora o profissional.
Dados divulgados pelo Ministério da Saúde revelam que entre 2011 e 2018, foram registrados 339.730 episódios de violência autoprovocada, ou seja, ideação suicida, em todo o País.
O levantamento, baseado no Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan), indica que 67% das vítimas desses incidentes foram mulheres.
Já os dados do Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM) mostram que meninos e homens configuram a maioria dos casos efetivos, ou seja, que consumam o ato do suicídio. Em 2017, foram 10.218 desses casos entre homens e 2.828 de mulheres.
No cotidiano, as mulheres são expostas a desafios diferentes, mas que também resultam na pressão da sociedade para representar certos papéis de gênero. Isso acontece ainda mais fortemente entre mulheres negras, das quais são esperadas resiliência e equilíbrio, independentemente das circunstâncias.
Essas mulheres, especialmente as que vivem em âmbitos periféricos, ocupam, em muitos casos, um espaço de “apoio” para os filhos, pais idosos e cônjuges, quando estão presentes, revela o psicólogo. “Então o que entra em cheque nesse índice maior de tentativas de suicídio é por ter todo esse peso de ser esse apoio em si”.
Essa é a realidade de uma grande parte da população brasileira, tendo em vista que, no Brasil, 75,2% da população mais pobre é preta ou parda, sendo o triplo de pessoas brancas na mesma situação. Os dados são do informativo "Desigualdades Sociais por Cor ou Raça no Brasil", divulgado em 2019 pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Além disso, 69% das 6,3 milhões de mulheres que moram em favelas são negras, conforme o Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase).
Acesso a serviços de saúde mental
A disparidade impacta diretamente o acesso de pessoas negras a serviços essenciais, como à saúde mental. Segundo Caio Ferreira, apesar de alguns avanços desde o início dos anos 2000, o acesso das pessoas negras à saúde mental continua insuficiente.
“Quando a gente começa a falar do acesso da população negra, eu prefiro iniciar falando que essa barreira já se inicia dentro do próprio processo formativo dos profissionais, porque o que se é estudado enquanto corpo, enquanto construção subjetiva, e modelo a ser minuciosamente averiguado no curso formador de profissionais de saúde, não é um corpo negro, é um corpo branco, um corpo que segue esse padrão”, detalha Caio.
E enfatiza: “A primeira barreira real para pessoa negra é ser visto enquanto pessoa nos cursos de formação”.
De acordo com ele, essa realidade corrobora para que pessoas negras sejam as maiores vítimas de diversas doenças mentais e do suicídio.
Uma revisão científica de 2022, feita por pesquisadores da Harvard, revelou que 30% dos médicos, estudantes e professores de medicina, vítimas de Burnout, são negros (30%), enquanto os brancos representam 18%.
Já o “Estudo Longitudinal de Saúde do Adulto (Elsa-Brasil)”, realizado ao longe de 15 anos, revelou que pessoas pretas e pardas são as maiores vítimas de ansiedade, fobias e depressão.
“Mas isso não chega nos processos formativos, então não chega em muitos profissionais, e a pessoa negra, nesse ambiente racista, passa a se questionar o quanto se pode sustentar, em um espaço que não fornece sequer o estado santo-lógico de humanidade a ela”, explana.
Problema de saúde pública
O suicídio foi a quarta causa de mortalidade na população brasileira no ano de 2016. O problema acomete pessoas dos mais variados grupos sociais em momentos de sofrimento. No entanto, esse momento de maior gravidade pode ser prevenido, de acordo com a cartilha “Óbitos por suicídio entre adolescentes e jovens negros 2012 a 2016” do Ministério da Saúde em parceria com a Universidade de Brasília.
O documento informa que comportamentos suicidas podem afetar qualquer pessoa, porém as mais vulneráveis à concretização do suicídio são homens, pessoas com pouca escolaridade, idosos, adultos, população indígenas e adolescentes e jovens negros.
Em março de 2024, o Ministério da Igualdade Racial, lançou o Plano Juventude Negra Viva, que identificou o pouco acesso dessa população a políticas de prevenção ao suicídio.
“Isso também se deve ao fato de que a busca por profissionais da psicologia ou da psiquiatria ainda é visto de forma pejorativa. O plano prevê a promoção de políticas de promoção da saúde da população negra de forma integral, incluindo a saúde mental e também a prevenção do alcoolismo, uso de outras drogas e saúde sexual”, explica Hallana de Carvalho.
Autocuidado
Por se tratar de um problema, que é muito mais coletivo do que individual, a prevenção do suicídio precisa ser vista como política pública, aos olhos de especialistas.
“Além da promoção de saúde para a prevenção de suicídios, enquanto educadora, vejo na educação um ponto imprescindível para a promoção da autoestima e valorização da juventude negra em toda a sua potencialidade”, diz a socióloga, que completa: “Apesar de muitas perdas e dores, devemos adotar práticas educativas afroreferenciadas que foquem na valorização das contribuições históricas que as populações negra e indígena deram para a construção desse país”.
Enquanto isso, Caio considera que tocar no assunto pode ser um primeiro passo para acabar com os estigmas e começar um debate que ajude a cessar o problema.
“Quando a gente fala sobre prevenção ao suicídio, a gente fala sobre um acesso integral a possibilidades de saúde, a instrumentos de saúde, de acesso à cultura, à alimentação, diminuir um pouco esse sofrimento e tentar dar condições básicas de humanização às pessoas”, finaliza Caio.
“Se precisar, peça ajuda”
A campanha Setembro Amarelo acontece anualmente com o intuito de mobilizar toda a sociedade para problemas de saúde mental que podem levar ao suicídio.
Desde 2014, durante o mês, a Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP) junto ao Conselho Federal de Medicina (CFM) divulgam a campanha, que acontece o ano todo.
Este ano, o tema da campanha é “Se precisar, peça ajuda”. No site do movimento, a ABP explica que “é importante falar sobre o assunto para que as pessoas que estejam passando por momentos difíceis e de crise busquem ajuda e entendam que a vida sempre vai ser a melhor escolha”.
O conselho compartilhado pelo Ministério da Saúde para quem busca ajuda é conversar sobre o assunto com alguém de confiança. É essencial falar sobre suas dores e angústias, e buscar um dos serviços abaixo:
- CAPS e Unidades Básicas de Saúde (Saúde da família, Postos e Centros de Saúde);
- UPA 24H, SAMU 192, Pronto Socorro; Hospitais;
- Centro de Valorização da Vida – 188 (ligação gratuita com atendimento 24 horas).