'Silêncio' de democratas em discurso de Trump mostra que partido ainda procura seu papel de oposição
Derrotada em novembro, sigla tem questões importantes a serem discutidas
Ao longo de mais de uma hora e meia, e com os olhos de boa parte dos EUA (e do mundo) voltados para si, o presidente Donald Trump usou o púlpito da Câmara dos Deputados como um palanque para desfilar as ações de seu intenso primeiro mês no cargo, fazer ameaças econômicas e expansionistas, e atacar seu antecessor, Joe Biden.
Em meio aos aplausos de seus aliados, incluindo seu braço direito, Elon Musk, um som também foi notado: o do silêncio da maioria do Partido Democrata, que parece não ter compreendido que retornou à oposição, e que está diante de um Donald Trump ainda mais visceral do que no primeiro mandato.
Em minoria na Câmara e no Senado, a liderança democrata escolheu a estratégia da contenção para um discurso que, como praticamente todos sabiam, seria uma extensão das incendiárias falas recentes do presidente.
Segundo a imprensa dos EUA, o líder da minoria na Câmara, Hakeem Jeffries, pediu aos seus colegas que ignorassem o apelo de parte de suas bases e “se comportassem”.
Para Jeffries, por vezes citado como uma das futuras lideranças do partido, esse tipo de ação poderia ter o efeito contrário, e a oposição deve se pautar por ideias, não por “espetáculos”.
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Alguns preferiram não comparecer, como o senador Chris Murphy e a deputada Alexandria Ocasio-Cortez, uma das integrantes da chamada “ala progressista”. Ao invés do silêncio de seus colegas, fizeram transmissões ao vivo, sessões de perguntas e respostas e comentários em tempo real.
Quando o republicano entrou no plenário, a deputada Melanie Stansbury levantou uma placa com a frase “isso não é normal”, que lhe foi arrancada das mãos pelo deputado governista Lance Gooden — um pequeno exemplo da animosidade incitada pelo presidente.
Trump seguiu sua parte e começou a discursar como em um palanque. Minutos depois, veio a primeira e mais impactante interrupção: com sua bengala em mãos, o deputado democrata Al Green, do Texas, se levantou e proferiu algumas palavras nada elogiosas. Ele foi repreendido pelo presidente da Câmara, Mike Johnson, e retirado à força do plenário pela segurança — enquanto os republicanos aplaudiam a expulsão, os democratas permaneciam sentados, em silêncio.
Os atos seguintes foram menos dramáticos: enquanto Trump atacava de maneira voraz o legado do presidente Joe Biden e dizia que “não há nada que diga que os deixe felizes”, alguns democratas mostravam placas pedindo “resistência”, e outros deixavam o plenário. Um parlamentar gritou “Seis de Janeiro”, citando a invasão do Congresso protagonizada por trumpistas há quatro anos, enquanto outro o chamou de “mentiroso”.
O deputado Maxwell Frost, da Flórida, mostrou uma camiseta com a frase “nenhum rei vive aqui”, fazendo alusão a um comentário feito pelo próprio Trump, há algumas semanas, na qual sugeria ser um monarca.
Com exceção do protesto de Green, Trump e os governistas não pareceram se incomodar.
“Jasmine Crockett (deputada democrata) e Maxwell Frost acabaram de sair. Adoro quando o lixo se leva para fora”, escreveu no X a deputada republicana Nancy Mace.
'Façam alguma coisa'
Após o discurso, foi a vez dos democratas emitirem a réplica. Na fala em tom ameno, a senadora Elissa Slotkin, disse aos americanos que as ações de Trump serão custosas ao bolso de todos, pediu que as pessoas saíssem das redes sociais e se engajem em um tema de interesse e afirmou que o presidente estava se aproximando demais de “ditadores como Vladimir Trump”.
Mas em trechos que irritaram alguns de seus aliados, disse ser favorável ao corte de gastos públicos — bandeira de Elon Musk —, mas que eles não precisam ser caóticos, e que era grata “por ser [Ronald] Reagan e não Trump no governo nos anos 1980”, referência a um dos presidentes mais criticados pelo Partido Democrata.
Além das óbvias críticas à fala de Trump, que segundo serviços de checagem de fatos teve uma boa quantidade de mentiras e distorções, a aparente inércia dos democratas também foi atacada. A ex-porta-voz de Biden, Symone Sanders, disse que as placas levantadas por alguns parlamentares “eram parecidas com as de um bingo” — o apresentador Stephen Colbert chegou a fazer uma placa, que em tom irônico pedia “façam alguma coisa”.
Em entrevista ao portal Politico, um estrategista democrata, que não quis se identificar, disse que os protestos foram “muito bobos e pouco sérios”, mas que não podia “deixar de sentir algum nível de empatia por eles”.
— Tenho certeza de que eles sentem que precisam fazer alguma coisa, qualquer coisa, [mas] não foi isso — completou.
A incapacidade de responder a Trump de uma forma eficaz não deixa de ser um retrato do Partido Democrata após a derrota nas eleições de novembro do ano passado, quando além de retornar à oposição se viu sem uma estratégia clara para os próximos quatro anos.
O maior desafio talvez seja encontrar uma mensagem comum e que chegue aos eleitores, algo que passa também pelo campo da comunicação, hoje um terreno fundamentalmente trumpista e que ´foi crucial para o retorno do presidente à Casa Branca
Na noite de terça-feira, alguns deputados do partido, como o senador e ex–pré-candidato à Presidência Cory Booker, criticaram Trump em tempo real, em vídeos curtos e que tiveram grande repercussão, seja para o bem, seja para o mal — um dos vídeos foi republicado por Musk e contas pró-Trump, em tom crítico, ampliando seu alcance. Mesmo ausentes do plenário, as transmissões de outros parlamentares atraíram muitos potenciais eleitores.
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Além de likes, as fraturas internas deixadas na campanha derrotada de Kamala Harris precisam ser discutidas — progressistas e centristas trocaram acusações sobre a responsabilidade pelo resultado de novembro, mas se têm alguma intenção de começar a virar o jogo nas eleições legislativas de 2026, o momento de aparar arestas programáticas é agora.
Para estrategistas, o plano radical de Trump para remodelar o Estado americano, assim como as alianças externas, tem muitos pontos vulneráveis, a começar pela inflação pós-tarifaços e os benefícios a grandes empresas e bilionários. Traduzir ao público essas potenciais ameaças não é simples, mas é essencial para tirar pontos importantes do presidente.
E como afirmou em artigo para o portal The Hill o professor Austin Sarat, do Amherst College, os americanos que votaram em Trump queriam mudanças: cabe aos democratas mostrar que podem produzir uma mudança menos caótica, e que não ignore a desilusão dos eleitores com o cenário político, algo que não é exatamente novidade nos EUA.