Startup quer criar bebês em laboratório sem espermatozoide ou óvulo: "Mudará aspectos da sociedade"
Cientistas buscam inicialmente ajudar casais inférteis, mas alguns avanços esbarram em questões éticas
Recentemente, grupos de cientistas do Reino Unido e de Israel anunciaram a criação de modelos de embriões sintéticos, feitos a partir de uma célula-tronco, sem a utilização de espermatozoides e óvulos.
Embora cause estranhamento, o feito é limitado e busca apenas desvendar mecanismos biológicos ligados aos estágios iniciais da fertilização. No entanto, uma startup de biotecnologia na Califórnia, Estados Unidos, já vislumbra implementar a técnica em procedimentos clínicos de reprodução humana no futuro.
Chamada Conception (concepção, em inglês), a empresa quer revolucionar a forma como a espécie humana se perpetua por meio da aceleração de estudos e eventual comercialização de um campo de pesquisa biomédica conhecido como gametogênese in vitro (IVG).
Essa ciência parte do fato de que células-tronco chamadas de pluripotentes induzidas, coletadas de indivíduos adultos, podem ser reprogramadas por pesquisadores para se transformarem em qualquer outro tipo de célula, inclusive nos gametas.
Os estudos com o IVG em humanos ainda são extremamente incipientes, e o uso na prática clínica, algo que é alvo de debates éticos e legais, ainda mais distante. Ainda assim, já faz parte do radar da Conception, que tem crescido e conta hoje com mais de 40 funcionários.
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— Pessoalmente, acho que o que estamos fazendo provavelmente mudará muitos aspectos da sociedade como a conhecemos. É realmente emocionante trabalhar em uma tecnologia que pode mudar a vida de milhões de humanos — diz Pablo Hurtado, diretor científico da startup, em entrevista à rádio americana NPR.
Objetivo inicial é criar óvulos
Inicialmente, o objetivo da empresa é oferecer uma alternativa a mulheres que estão em algum cenário que afete a produção dos óvulos, como condições de saúde ou apenas uma idade mais avançada. A ideia é ser possível coletar a célula-tronco da paciente e reprogramá-la para se tornar um gameta feminino – que, então, poderá ser utilizado num processo comum de fertilização com o espermatozoide do parceiro.
— Basicamente, estamos tentando transformar um tipo de célula-tronco chamada célula-tronco pluripotente induzida em um óvulo humano. (Isso) realmente abre a porta, se você puder criar ovos, para poder ajudar as pessoas a terem filhos (biológicos) que, de outra forma, não teriam opções no momento — explica Matt Krisiloff, um dos fundadores da Conception.
Os responsáveis acreditam ter feito o maior avanço já relatado no uso da IVG para criar óvulos ao serem os únicos que conseguiram criar estruturas presentes nos ovários chamadas de folículos, que revestem e armazenam os óvulos até que estejam maduros.
Os pesquisadores, no entanto, não deram muitos detalhes sobre e também não publicaram os achados em nenhuma revista científica. Especialistas ouvidos pela NPR se dividem em relação a até que ponto o feito de fato foi alcançado.
— Tenho reservas de que Conception realmente tenha alcançado um folículo. A conclusão foi baseada em dois biomarcadores, um para as células foliculares e outro para o oócito. Eu precisaria ver mais evidências do que isso — afirma Amander Clark, pesquisadora que trabalha com IVG na Universidade da Califórnia.
Já Paula Amato, cientista especialista na área da Universidade de Saúde e Ciência de Oregon, lembra que a "Conception tem uma equipe de mais de 30 cientistas, bem como acesso a financiamento e recursos suficientes para apoiar pesquisas rigorosas de IVG”. "Eu não ficaria surpresa se eles realmente tiverem atingido um estágio de folículo primário”, continua.
Óvulos são apenas o início
Os óvulos, porém, são apenas o primeiro passo de objetivos ambiciosos dos fundadores da Conception. Caso os estudos avancem, uma possibilidade de uso clínico do IVG seria a criação de um embrião com o material genético de pessoas do mesmo sexo biológico.
— Meu maior interesse pessoal é permitir que casais do mesmo sexo também possam ter filhos biológicos juntos. Sim, eu sou gay, e isso é algo que me deixou tão interessado nisso em primeiro lugar — diz Krisiloff.
Isso seria teoricamente possível, já que bastaria reprogramar a célula-tronco de um dos parceiros para se tornar um óvulo. Com isso, seria possível fecundá-lo com o espermatozoide do outro e, por fim, implantar o embrião em uma barriga de aluguel.
A mesma lógica poderia ser aplicável para um casal de duas mulheres, afirmam os especialistas, por meio da reprogramação da célula-tronco de uma delas em um espermatozoide.
— Há algo intrínseco em compartilhar uma vida que é metade eu e metade meu marido. Não tenho essa capacidade agora. Estou dedicando minha vida a tentar mudar isso — diz Hurtado, que também é gay.
Caso a pesquisa avance, e a legislação permita, nada impediria que no futuro a técnica fosse utilizada até mesmo para transformar a célula-tronco diretamente em um embrião, como fizeram os pesquisadores de Israel e do Reino Unido em estágio iniciais.
Ainda não é claro se, após implementado em um útero, esse embrião conseguiria se desenvolver em um ser humano completo. Nesse caso, ele teria exatamente o mesmo material genético que o dono da célula-tronco original, como uma espécie de clone.
A perspectiva, assim como as anteriores, é alvo de um intenso debate ético entre especialistas. Em um artigo sobre o tema, pesquisadores da Universidade de Oxford, no Reino Unido, e da Universidade de Melbourne, na Austrália, defendem o uso para pessoas sem gametas saudáveis ou para casais de pessoas do mesmo sexo. Porém alertam contra a “reprodução individual” com base nos princípios éticos.
— A porta que se abre para este espaço é aquela em que muitas coisas não estão resolvidas. Tantas questões éticas ainda precisam ser desvendadas — disse a diretora do Centro de Biotecnologia e Política Global de Saúde da Universidade da Califórnia, Michelle Goodwin, em outra reportagem da NPR sobre o assunto.