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Total de mortos em resgate de reféns em Gaza levanta questões sobre ação de Israel

Analistas afirmam que táticas do Hamas não eximam Estado judeu de compromisso com o direito internacional e proteção de civis

Homem palestino caminha sobre os escombros de edifícios destruídos após uma operação das Forças Especiais Israelenses no campo de Nuseirat, no centro da Faixa de Gaza.Homem palestino caminha sobre os escombros de edifícios destruídos após uma operação das Forças Especiais Israelenses no campo de Nuseirat, no centro da Faixa de Gaza. - Foto: Eyad Baba/AFP

Quando os quatro israelenses acordaram em Gaza, no sábado, eram reféns do Hamas há 245 dias. Os edifícios em que eram mantidos, dois blocos de apartamentos de concreto não muito altos, eram similares às outras residências próximas, em um bairro civil cheio de famílias palestinas.

Dentro de poucas horas, os reféns, três homens e uma mulher, foram reunidos com suas famílias.

— Estou muito emocionada — disse a refém Noa Argamani, de 26 anos, ao primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, em um telefonema após ter sido libertada. — Há tanto tempo não ouvia hebraico.
 

O reencontro foi resultado de uma operação de resgate arriscada e há muito planejada, na qual todo o poder do Exército israelense foi utilizado com um efeito devastador, levantando questões sobre seu custo humano e se Israel está, de fato, fazendo o suficiente para proteger os civis palestinos em sua represália contra o grupo terrorista Hamas — exigência que tem levado ao aumento da pressão internacional sobre o Estado judeu, inclusive por parte de seu principal aliado, os Estados Unidos.

Para especialistas, os números de mortos e feridos foram "desproporcionais" ao objetivo do resgate.

O esforço de resgate no campo de refugiados de Nuseirat envolveu centenas de agentes dos serviços secretos e duas equipes de comandos que invadiram simultaneamente os edifícios onde os reféns estavam, segundo o Exército israelense.

Em um dos apartamentos, onde estavam os reféns homens, iniciou-se um tiroteio entre os soldados e os combatentes do Hamas, segundo o Exército e as imagens de vídeo divulgadas do confronto.

Mais tarde, e sob uma saraivada de tiros, o caminhão em que os três reféns homens e um oficial israelense ferido eram deslocados enguiçou e foi cercado por militantes, disseram as autoridades israelenses.

Para dar tempo suficiente e ampla cobertura à operação para libertar os cativos, disseram os militares, a Força Aérea começou a atacar dezenas de alvos próximos. Muitos palestinos só perceberam os combates quando ouviram a explosão de bombas.

Dezenas de moradores, incluindo crianças, foram mortos durante a operação. As autoridades de saúde do enclave, que é controlado pelo Hamas desde 2007, estimam o número de mortos em mais de 270 — o Exército israelense disse que o número não passa de 100.

Nem as autoridades palestinas ou israelenses ofereceram quanto do total eram civis ou combatentes.

— Cada vida civil perdida nesta guerra é resultado da forma como o Hamas operou — afirmou o porta-voz das Forças Armadas de Israel, Peter Lerner, à rede ABC no domingo.

Desde o início do conflito, em outubro passado, Israel acusa o Hamas de usar os palestinos em Gaza como escudos humanos ao colocar parte de seus túneis e estruturas sob instalações civis.

Os próprios reféns resgatados no sábado teriam sido mantidos em edifícios localizados no campo de Nuseirat, uma região densamente povoada no centro do enclave palestino, aparentemente em casas de famílias, o que seria consistente com relatos de reféns libertados durante uma trégua temporária em novembro.

Ainda assim, as táticas usadas pelo Hamas em sua condução do conflito não eximam Israel da responsabilidade e culpabilidade legal, segundo especialistas em direito internacional consultados pelo Washington Post. O jornal americano cita o princípio da proporcionalidade, que proíbe os exércitos de infligir baixas civis que sejam excessivas em relação à vantagem militar direta prevista no ataque.

— O fato de seu adversário violar o direito humanitário internacional não altera suas obrigações — afirmou o professor de direito na Rutgers Law School Adil Haque ao WPost. — Os danos previsíveis aos civis eram desproporcionais ao objetivo legítimo de resgatar os quatro reféns.

Procuradas, as Forças Armadas israelenses não responderam às perguntas sobre as medidas tomadas para proteger os civis.

A preparação
Semanas antes do ataque, os serviços secretos israelenses identificaram dois edifícios, separados por cerca de 600 metros, onde pensavam que estavam os reféns.

Em maio, os serviços secretos de Israel determinaram que a Argamani — cuja captura em um festival de música em 7 de outubro foi registrada em um vídeo amplamente compartilhado — estava detida no apartamento de uma família perto do mercado de Nuseirat, disse aos jornalistas o porta-voz principal das Forças Armadas, o contra-almirante Daniel Hagari. Perto dali, no apartamento de outra família, estavam os três homens reféns: Almog Meir Jan, 21 anos, Andrey Kozlov, 27 anos, e Shlomi Ziv, 41 anos.

A casa em que os homens estavam detidos pertencia a Abdallah Aljamal, segundo os militares israelenses. A morte de Abdallah Aljamal foi confirmada pelo Gabinete de Comunicação Social do governo de Gaza no domingo, que disse que Aljamal havia trabalhado para a agência de notícias Palestine Now, afiliada ao Hamas.

— Decidimos conduzir a operação em ambos os apartamentos porque, se tivéssemos escolhido apenas um deles, o risco de os terroristas matarem os reféns no outro seria demasiado elevado — disse Hagari.

Em preparação para a missão, os militares “construíram modelos dessas casas para praticar”, disse o porta-voz, acrescentando que a coordenação entre as duas equipes tinha de ser “tão precisa como uma operação cerebral” para que o erro de um grupo não causasse problemas ao outro.

Elemento surpresa
No sábado de manhã, quando o sol se aproximava do seu ápice abrasador do meio-dia, os habitantes de Nuseirat deixaram o calor dos seus edifícios de apartamentos.

O momento do dia escolhido, a manhã, não era por acaso, segundo as autoridades citadas pelo WPost: a ideia era maximizar o elemento surpresa, o que significaria também ruas lotadas com civis.

Do lado de fora, o cenário se concretizada, com palestinos alheios ao que acontecia seguindo para o trabalho, fazendo compras no mercado e visitando a família.

— Era tudo tão normal e as ruas estavam cheias de vida, as pessoas vendiam e compravam coisas — disse Bayan Khaled abu Amr, 32 anos, que tinha saído de casa naquela manhã para visitar o tio.

A 50 km de distância, oficiais israelenses amontoavam-se na sala de comando do Shin Bet, a agência de segurança israelense, em Tel Aviv. “A tensão no ar”, disse Hagari, era “muito, muito alta”. Ali, por volta das 11 horas, o general Herzi Halevi, chefe do Estado-Maior das Forças Armadas, pronunciou a palavra “Vai”, autorizando os comandos da unidade antiterrorista YAMAM de Israel a iniciar o ataque.

Os soldados da unidade ligaram dois veículos que tinham a aparência de caminhões locais, segundo as autoridades israelenses, e dirigiram-se a cada um dos edifícios onde os reféns estavam.

Khalil Abdul Qader al-Tahrawi, um comerciante de 60 anos, disse que estava sentado na porta da sua loja quando viu pessoas vestidas com os uniformes das Brigadas al-Qassam, o braço armado do Hamas, aproximarem-se do edifício onde os três homens foram mais tarde encontrados detidos.

O grupo, disse ele, pareceu-lhe “suspeito e estranho”, sobretudo porque “subiram no edifício com escadas e desceram novamente apontando as armas para todo o lado”. Disse acreditar que se tratava de comandos israelenses. Outras testemunhas também pensaram que eram agentes das forças especiais israelenses, mas vestidos com roupas civis. As autoridades israelenses recusaram-se a dizer se as suas forças usaram disfarces durante a operação.

Momentos depois de o general Halevi ter autorizado a operação, as tropas invadiram simultaneamente os dois edifícios. Argamani foi mantida sob guarda numa sala trancada e os seus captores foram rapidamente mortos antes mesmo de perceberem o que acontecia, disseram as autoridades israelenses.

— No edifício de Noa Argamani, as nossas forças os surpreenderam completamente — disse Hagari.

Escudo de fogo
Perto do momento em que a equipe designada para libertar Argamani a conduzia para um ponto de helicóptero ao longo da costa mediterrânica de Gaza, a equipe que trabalhava para resgatar os três homens no outro edifício começou a ser atacada, disse Hagari.

Foi nessa altura que Arnon Zmora, de 36 anos, um oficial da unidade YAMAM, foi baleado e ferido, segundo o porta-voz. Imagens de câmeras corporais liberadas pela polícia de fronteira israelense mostram os oficiais de Israel encontrando os reféns homens no interior de um apartamento residencial, enquanto continuavam trocando tiros com militantes não mostrados nas imagens.

Ex-detentos relatam abusos e agressões: Conheça a base onde Israel prendeu milhares de palestinos capturados em Gaza

Na filmagem, editada para desfocar os rostos dos soldados e remover imagens de sangue, os reféns são vistos saindo do edifício e percorrendo um terreno cheio de árvores, enquanto os tiros irrompem em volta.

— Membros do Hamas dispararam contra eles — disse o al-Tahrawi, o proprietário da loja.

Mais militantes juntaram-se ao confronto, segundo Hagari, “correndo pelas ruas com RPGs”, um acrônimo para granadas propulsionadas por foguetes. O porta-voz relatou que "havia muito fogo à nossa volta".

Enquanto Argamani se aproximava da praia em um veículo, o outro caminhão utilizado no resgate quebrou, de acordo com oficiais israelenses que falaram sob condição de anonimato. Para dar cobertura ao caminhão avariado, disseram os oficiais, a Força Aérea começou a bombardear a área próxima, criando efetivamente um escudo de fogo.

— De repente, ouvi um [barulho] alto de bomba e o som de alguns mísseis em volta da mesquita — disse Abu Amr, a mulher que tinha ido visitar o tio. — Não me lembro da hora exata, mas talvez às 11h20.

Ela continuou:

— Novamente, houve um grande e alto som de míssil, e uma fumaça cinza começou a subir — acrescentou Abu Amr. — As pessoas começaram a gritar.

No caos do bombardeio, ela disse, “as crianças gritavam; as mulheres caíam enquanto corriam”. Pnina Sharvit Baruch, antiga conselheira dos militares israelenses em questões de direito internacional, afirmou ao WPost que em todas as guerras há casos em que as forças "se encontram em uma situação em que ficam presas" e que "não é crime" tentar sair de tal situação.

As forças terrestres israelenses posicionadas nas proximidades dirigiram-se para o caminhão desativado e transferiram os reféns e o inspetor-chefe Zmora, o agente ferido, para outro veículo, segundo as autoridades israelenses.

A partir daí, dirigiram-se para a praia, onde o segundo de dois helicópteros os esperava. O primeiro já tinha descolado com a Argamani a bordo. Imagens liberadas pelos militares mostraram soldados caminhando com os reféns ao longo da praia, enquanto o helicóptero levantava nuvens de areia.

— Chamamos os reféns de diamantes, por isso dizemos que temos os diamantes nas nossas mãos — disse Hagari.

'Só se importavam com a operação'
O inspetor-chefe Zmora foi transferido para um hospital israelense, onde acabou não resistindo devido aos ferimentos.

No domingo, os corredores e saguões do último grande centro médico no centro de Gaza, o Hospital dos Mártires de al-Aqsa, em Deir al-Balah, permaneciam “muito lotados” com novos pacientes, depois de mais de cem corpos terem sido levados para lá no sábado, disse Khalil Daqran, um funcionário do hospital.

As instalações médicas — já lotadas antes da missão de resgate israelense — transbordavam, disse o doutor Abdelkarim al-Harazin, de 28 anos, um médico que trabalha no local. O Ministério da Saúde de Gaza disse que cerca de 700 pessoas tinham ficado feridas.

— O número de vítimas é suficiente para levantar questões sobre se o uso do fogo foi indiscriminado — afirmou o advogado israelense especializado em direito internacional humanitário Michel Sfard ao WPost. — Mas precisamos saber exatamente o que aconteceu.

Para o advogado, o cerne da questão é "se os alvos eram legítimos", questionando:

— O poder aéreo foi usado em um objetivo militar prospectado ou foi um uso aleatório e indiscriminado de bombardeio numa área muito densamente povoada?

Abdel Hamid Ghorab, um paramédico de 33 anos, descreveu "bombardeios aleatórios e contínuos" nas proximidades do local em que trabalha, o Hospital al-Awada, com intensidade "sem precedentes".

Em um cenário de caos, as pessoas corriam para tentar resgatar os feridos. Ele conta que ajudou a transferir mais de cem paciente gravemente feridos, incluindo crianças, para o Hospital al-Aqsa.

— Eles só se importavam em realizar a operação, mesmo que fosse às custas de todas essas vidas — lamentou.

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