Transplantes de rins de doador vivo caem 64% na pandemia e chegam ao nível da década de 1980
Cirurgias de córneas, coração e pulmão também sofreram queda; médicos esperam que o primeiro trimestre de 2021 tenha o menor prejuízo possível
O ano de 2020 não foi nada favorável aos pacientes em lista de espera para transplante de órgãos no país. As cirurgias de transplante, que vinham subindo ano a ano, sofreram uma queda histórica em comparação com os últimos dez anos.
Algumas foram mais afetadas, como é o caso do transplante de rins de doador vivo, com redução de quase 64%, e de pulmão, com queda de 39% -ainda mais escassos por conta da doença respiratória que é a Covid-19.
No caso dos transplantes de rins em vida, foram realizadas apenas 411 cirurgias do tipo em 2020 ante 1.076 em 2019, número comparável ao que era observado antes da criação na década de 1980 do Sistema Único de Saúde (SUS) e do Sistema Nacional de Transplantes, que melhoraram significativamente as taxas de transplantes no país por meio de campanhas de conscientização e a criação dos centros estaduais de transplantes.
Outros transplantes, como de córnea, foram paralisados por potencial risco de contaminação entre doador e receptor -e fecharam o ano com uma redução de quase 53%. Quedas significativas, porém não tão acentuadas, foram também registradas para transplantes de coração (-17%), pâncreas (-12,5%) e fígado (-9%), embora esta última tenha sido menor para doador de falecido do que a queda na taxa de doadores, refletindo um aumento no aproveitamento do órgão.
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Os dados são da última edição do Registro Brasileiro de Transplantes, publicação oficial da Associação Brasileira de Transplante de Órgãos (ABTO), com informações de 2013 a 2020.
Ao longo de 2020, os transplantes de órgãos e tecidos tiveram uma queda acentuada no primeiro semestre, de quase 40%, seguida por uma subida de 11% em agosto e setembro. A expectativa da associação era que o ano fechasse com redução de cerca de 30% em relação a 2019.
Neste sentido, houve uma boa notícia: a redução na taxa de doadores efetivos por milhão de população (pmp) não foi tão acentuada, chegando a 12,7%, ou de 18,4, no início do ano, para 15,8 em dezembro.
Porém, com uma expectativa lançada em 2015 de chegar à taxa de 24 pmp em 2021, a associação agora espera uma recuperação lenta no ano, tentando voltar ao patamar inicial de 2020, para depois crescer novamente entre os anos 2022 a 2024, quando esse número pode ser atingido.
As taxas de doadores efetivos por milhão de população são diferentes entre as cinco regiões do país, refletindo as dificuldades de acesso a equipes médicas que realizam transplantes de órgãos e a heterogeneidade do sistema. A região Sul se destaca como a melhor do país, com taxa de 31,4 pmp, comparável à de países europeus, como Espanha (49,6), Portugal (33,8) e França (33,3).
Nordeste (9), Centro-Oeste (11,2) e Sudeste (13,6) têm desempenho aproximado. Já a região Norte apresenta a menor taxa, com 2,1 doadores efetivos.
No cenário de escalada da pandemia, pacientes com necessidade de transplante de órgãos precisam ser transportados para outros estados com capacidade de atendimento, explica Valter Garcia, nefrologista especialista em transplantes de rins, membro conselheiro da ABTO e editor do relatório.
O que mais afetou no ano passado os procedimentos cirúrgicos foi o medo de os voluntários em vida, que são eletivos, se contaminarem com o coronavírus. "Um paciente que faz hemodiálise e aguarda o transplante de um rim já vai ao hospital ou à clínica três vezes por semana. Mas um doador sadio, que precisará ficar internado em um hospital com alta incidência de Covid-19 por cinco, seis dias, é arriscado", diz.
Mesmo assim, o saldo de casos de transmissão do Sars-CoV-2 pelo doador ao transplantado foi zero. As cirurgias de transplante de córnea foram interrompidas em diversos estados pelo risco de contaminação por essa via, mas foram realizados 7.127 transplantes deste órgão, equivalente à metade das pessoas atualmente em lista de espera. A taxa de doadores efetivos caiu de 71,7 pmp, em 2019, para 33,9 pmp, valor não registrado desde a década de 1990.
Já para 2021, a urgência é a liberação de leitos para retomada dos procedimentos. Enquanto alguns lugares onde não são feitos transplantes de, por exemplo, rins ou pulmões, como é o caso dos estados do Norte, o transporte desses pacientes é dificultado se os estados próximos estão superlotados e sem equipes disponíveis para atendimento.
As taxas elevadas de ocupação de leitos de UTI em todo o país pela Covid-19 causam a maior preocupação para a retomada dos transplantes. "Em Porto Alegre, tínhamos um bloco no complexo hospitalar da Santa Casa da Misericórdia reservado para as cirurgias de transplantes, mas pela falta de leitos, ele foi realocado para Covid. Nós estamos aguardando a liberação de leitos para retomar os transplantes imediatamente", explica Garcia.
Apesar do cenário conturbado devido ao atual momento da pandemia, os médicos esperam que o primeiro trimestre de 2021 tenha o menor prejuízo possível aos mais de 43 mil pacientes em fila de espera para transplantes.
"Nossos estudos sugerem que a letalidade de Covid-19 é oito a dez vezes maior nos pacientes transplantados do que na população geral, onde a taxa no país é de 2,5%. Por isso, nós, da ABTO, enviamos uma carta ao Ministério da Saúde preconizando a inclusão destes pacientes nos grupos prioritários para a vacinação."
Além da alta mortalidade caso sejam contaminados, os pacientes transplantados sofrem também com as sequelas da espera por um órgão. A taxa de óbitos de pacientes aguardando transplante de rins aumentou 33% em 2020.
"Os transplantes não podem esperar a pandemia terminar para voltarem, eles foram suspensos nos locais onde houve um esgotamento, mas é importante agora que alguns estados retomem porque se em todo o país piorar, o impacto nestes pacientes será muito maior", finaliza.