AMÉRICA DO SUL

Três meses após Lula receber Maduro, renegociação da dívida da Venezuela segue parada

País deve US$ 1,27 bilhão (cerca de R$ 6,2 bilhões)

Presidente da Venezuela Nicolas Maduro com Luiz Inacio Lula da Silva Presidente da Venezuela Nicolas Maduro com Luiz Inacio Lula da Silva  - Foto: Evaristo Sá/ AFP

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A visita de Nicolás Maduro ao Brasil no fim de maio — a primeira ao país desde 2015 — foi comemorada como “histórica” pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que defendeu o regime de Caracas, afirmando que se trata de uma “narrativa” os questionamentos globais sobre a falta de democracia no país. No meio da controvérsia, foi anunciada uma iniciativa para renegociar a dívida da nação vizinha com o Brasil, estimada — sem juros — em US$ 1,27 bilhão, ou cerca de R$ 6,2 bilhões.

Mas, três meses após a recepção de Brasília — a serem completados nesta terça-feira —, o restabelecimento das relações diplomáticas com a Venezuela não veio acompanhado de avanços reais na questão financeira: Caracas não só não começou a pagar a dívida como tem adiado as negociações para tentar chegar a um acordo sobre como quitá-la.

Grupo de trabalho parado
Em maio, o governo federal decidiu criar um Grupo de Trabalho para “consolidar” a dívida de US$ 1,27 bilhão do governo venezuelano com o Brasil. A partir de um diagnóstico, seria organizada a programação do pagamento dos débitos. Desde então, porém, as tratativas estão estancadas.

Uma reunião para tratar do tema era articulada para este mês, mas, a pedido da Venezuela, o encontro foi adiado e ainda não tem data confirmada. Antes disso, segundo o Ministério da Fazenda, o principal contato com as representações do país vizinho foi em 20 de julho, quando houve a instalação da “mesa técnica” que ficou responsável pelas tratativas.

“A forma de quitação da dívida do país vizinho ainda não foi abordada pelos dois lados. Importante destacar que o Brasil busca receber a integralidade da dívida. Qualquer outra solução, caso fosse proposta pelos devedores, teria que passar por avaliação do governo brasileiro e ser aprovada pelo Congresso Nacional”, informou, em nota, o Ministério da Fazenda.

Da parte do Brasil, além da pasta comandada por Fernando Haddad, estão nas negociações Itamaraty, Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior (MDIC) e o BNDES. O MDIC confirma a negociação, e a pasta de Relações Exteriores afirmou em nota que o tema não está na “instância competente”.

Por sua vez, a Embaixada da Venezuela em Brasília não respondeu ao questionamento do Globo até esta publicação.

Oficialmente, a equipe econômica diz que qualquer solução que não envolva o pagamento integral teria de ser aprovada pelo Congresso Nacional, que precisaria aprovar eventual desconto ou perdão de dívida — o que, por enquanto, não está na mesa de negociação.

Qual a dívida?
Segundo o MDIC, a dívida de US$ 1,27 bilhão não contabiliza multas e juros pelo atraso. Desse total, US$ 1,15 bilhão são valores já indenizados pelo Fundo de Garantia à Exportação (FGE), vinculado ao Ministério da Fazenda. Ou seja, dinheiro que pode ser considerado “prejuízo” que o fundo — arcado com recursos públicos — levou ao indenizar bancos que financiaram as exportações de empresas brasileiras.

Os US$ 119,16 milhões restantes são obrigações a vencer, que podem vir a ser indenizados caso não haja pagamento pela Venezuela.

Como funciona?
Assim como outros países em desenvolvimento e desenvolvidos, o Brasil tem uma estrutura de financiamento de exportações, ou seja, um apoio do setor público à ampliação da oferta de bens e serviços por empresas nacionais. Esses mecanismos tradicionalmente incluem um fundo garantidor para os bancos que fazem o financiamento.

Se houver inadimplência do país que fez a importação do Brasil, o fundo garantidor cobre o débito, e o devedor (no caso o país comprador) precisa ressarcir o administrador desse fundo. No caso do Brasil, há o FGE, cujo principal financiador é o BNDES.

O financiamento é uma engenharia financeira que funciona mais ou menos assim: no caso venezuelano, bancos brasileiros emprestaram US$ 1,27 bilhão a empresas brasileiras, como pagamento de produtos comprados pela Venezuela. A Venezuela, por sua vez, ficou com o passivo junto a esses bancos. Os bancos brasileiros, no entanto, são cobertos pelo FGE. Em caso de prejuízo por calote da Venezuela, eles são ressarcidos, e o FGE fica com a obrigação de cobrar de Caracas.

A condução do processo de reestruturação de dívida dos países, como Venezuela e Cuba, está sob a responsabilidade da Secretaria de Assuntos Internacionais do Ministério da Fazenda.

— As empresas têm que exportar. Se elas ficarem restritas à economia brasileira, elas não vão conseguir gerar empregos, ganhar escala, aumentar sua carteira de fornecedores. É necessário que o setor empresarial vá além das suas fronteiras — afirma José Gordon, diretor de Desenvolvimento Produtivo, Inovação e Comércio Exterior do BNDES.

De 1991 até 2022, foram US$ 100 bilhões de apoio à exportação. No primeiro trimestre deste ano, US$ 700 milhões foram desembolsados, ante US$ 600 milhões em todo o ano de 2022. Nos anos de maior atuação, como por exemplo 2010, foram US$ 11 bilhões.

O BNDES apoia mais produtos de valor agregado, os chamados bens de capital, incluindo máquinas e equipamentos para diferentes setores. Não há apoio a commodity agrícola, por exemplo.

Para a Venezuela, além de serviços de engenharia de empresas brasileiras, houve exportações de aeronaves, turbinas e outros equipamentos produzidos em território nacional.

— Todo exportador que usa o FGE deposita um recurso, como se fosse um seguro. Esse fundo é constituído de recursos do prêmio do exportador, não tem recursos do contribuinte. Não é o imposto do contribuinte que mantém esse fundo. É o exportador que paga esse prêmio, para, caso ocorra um default (calote), ele possa usar o fundo garantidor — explica o diretor do BNDES.

Como o débito foi acumulado?
Os débitos da Venezuela e de outros países com o Brasil são referentes ao não pagamento das exportações de bens e serviços realizados por empresas brasileiras.

As operações foram financiadas, em sua maior parte, pelo BNDES, porém, há operações com crédito de bancos privados. Ou seja, essas instituições financeiras desembolsam os recursos para as empresas e, assim, as exportações são realizadas.

Essas operações ocorrem no âmbito do Seguro de Crédito à Exportação (SCE), previsto para operações financeiras de crédito que envolvam riscos comerciais, por exemplo. Essa modalidade de seguro recebe aportes do FGE.

— O fundo é superavitário, historicamente a maior parte dos financiamentos feitos foi paga de volta. Agora, quem contrata mão de obra brasileira, engenharia brasileira e equipamentos brasileiros são países em desenvolvimento e com os riscos inerentes aos países em desenvolvimento — avalia Welber Barral, do Grupo Ourinvest e ex-secretário do Comércio Exterior.

Ele estima que, no caso da Venezuela, há aproximadamente oito anos de atraso. E, em muitos países, o prosseguimento do pagamento do débito depende das relações políticas entre os dois lados.

— Cuba parou de pagar quando houve a suspensão no fim do governo Temer e começo do governo Bolsonaro da questão dos Mais Médicos. [Foi] Quando a situação política complicou e eles pararam de pagar — lembra Barral.

No momento, as tratativas com Caracas seguem sem avanços, e a Fazenda ainda não tem data para reaver os débitos.

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