Trump perde imunidade em processo de difamação movido por mulher que o acusou de estupro
Departamento de Justiça reviu parecer antigo e determinou que o ex-presidente não estava protegido pelo cargo ao fazer comentários sobre E. Jean Carroll
O Departamento de Justiça dos Estados Unidos afirmou na terça-feira que não sustentará mais o argumento de que o então presidente Donald Trump falava em nome da Casa Branca ao fazer comentários sobre a escritora E. Jean Carroll em 2019, deixando-o exposto a novos processos por calúnia. Em maio, um júri civil determinou que o republicano pagasse US$ 5 milhões (R$ 24,9 milhões) em danos à colunista após considerá-lo responsável de difamação e de abuso sexual nos anos 1990.
Após vencer a ação civil, Carroll tenta emplacar um novo processo paralelo contra Trump por comentários que fez quando era presidente, e a decisão do Departamento de Justiça dá novo impulso ao seu argumento. Ela processa o republicano em um tribunal civil pedindo US$ 10 milhões por difamação ao responder perguntas de repórteres há quatro anos, quando acusou pela primeira vez o então presidente de estuprá-la no vestiário de uma loja de departamento nova-iorquina.
Na ocasião, Trump disse que as acusações da mulher eram "totalmente falsas", afirmou não conhecê-la e que não poderia tê-la violado por que ela não era "seu tipo". O processo de difamação começou nesta época, mas o Departamento de Justiça, à época sob o comando do trumpista William Barr, interviu recorrendo a uma lei que transforma o governo em réu, ao invés da pessoa física, quando alguém com cargo público é processado por atos no exercício da função.
O juíz responsável pelo caso, Lewis Caplan, rejeitou o pedido do Departamento, afirmando que os comentários de Trump "não tinham relação com os interesses oficiais dos EUA", o que fez a defesa recorrer. As esferas superiores acabaram retornando o caso a Caplan, que pediu ao Departamento de Justiça, agora sob o comando do democrata Merrick Garland, um segundo parecer após os advogados de Carroll revisarem o processo para incluir comentários secundários feitos por Trump no dia 10 de maio à CNN.
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O evento promovido pela televisão americana ocorreu dias após o júri civil responsabilizar Trump por difamação e abuso sexual pelo episódio que ocorreu nos anos 1990 no vestiário da Bergdorf Goodman — inocentou-o, contudo, de estupro, que na lei estadual limita-se à penetração. De acordo com Carroll, Trump a pressionou contra a parede, abaixou sua meia-calça e a violou.
Embora estupro e abuso sexual sejam ofensas de natureza criminal no estado, já teriam prescrito três décadas. O processo no âmbito civil só foi possível após Nova York aprovar uma legislação para que vítimas de abuso pudessem abrir processos pedindo compensações por casos passados — o Adult Survivors Act (Lei dos Sobreviventes Adultos, em tradução livre), apontado como uma conquista do movimento #MeToo.
Após a responsabilização na esfera civil, Trump disse à emissora que Carroll era "louca", suas acusações eram "falsas" e que o julgamento civil foi "fraudulento". Na terça, ao emitir um parecer revisado sobre o caso, o Departamento de Justiça disse que seus procuradores determinaram não haver "evidências suficientes" para dizer que o então ocupante do Salão Oval agia dentro do escopo de suas funções ao falar sobre a colunista em 2019.
"Não há mais um embasamento suficiente para concluir que o ex-presidente foi motivado por um 'mais do que insignificante' desejo de servir ao governo americano", disseram os procuradores, que analisaram também depoimento de Trump, a jurisprudência existente e a queixa revisada da mulher. De acordo com eles, os comentários foram de fato realizados por canais habitualmente usados para falar de atividades oficiais, mas fizeram uma ressalva:
"Por mais que as declarações em si tenham sido feitas em um contexto de trabalho", diz o comunicado, "as alegações que causaram os pronunciamentos eram referentes a um incidente puramente pessoal: um suposto abuso sexual que ocorreu décadas antes da Presidência de Trump.
Um advogado do ex-presidente não respondeu ao pedido de comentário feito pelo New York Times, mas Steven Cheung, porta-voz da campanha trumpista para 2024, afirmou que há motivação política:
— O Departamento de Justiça rompeu com uma longa tradição em uma tentativa desesperada de perpetuar tal fraude — disse ele.
A advogada de Carroll, Roberta Kaplan, por sua vez, afirmou em comunicado que sua cliente está "grata" com a decisão reconsiderada do Departamento de Justiça. Segundo ela, "nós sempre acreditamos que Donald Trump fez seus comentários difamatórios" guiado por vontade própria "e apesar de ser presidente".
Embora mais de uma dezena de mulheres já tenham acusado Trump de má conduta sexual ao longo dos anos, alegações que ele sempre negou, o caso de Carroll é o primeiro em que tais acusações tiveram êxito perante um júri, mesmo que civil, em maio.
O imbróglio é uma dos vários problemas com a Lei no caminho de Trump, réu em dois processos criminais diferentes. Em abril, tornou-se o primeiro ex-líder americano a virar réu em um caso criminal pela falsificação de registros comerciais, incluindo o suposto suborno à atriz pornô Stormy Daniels, que tramina na Justiça estadual de Nova York. No mês passado, foi a um tribunal federal de Miami ser imputado de 37 acusações referentes a sete crimes federais no caso relacionado à retirada de documentos sigilosos da Casa Branca ao fim de seu mandato.
Há a possibilidade da lista se expandir, já que o Departamento de Justiça também investiga a conduta do presidente no 6 de janeiro de 2021, quando turbas incitadas pelo ex-presidente invadiram o Capitólio, sede do Congresso americano, durante a sessão conjunta que confirmaria a vitória do presidente Joe Biden. Além disso, outros problemas em potencial englobam uma investigação sobre uma possível tentativa de interferir no processo eleitoral da Geórgia, onde pediu para que autoridades eleitores "encontrassem" os votos que faltavam para reverter o triunfo democrata.