Trump usa desinformação sobre "peixe minúsculo" para culpar governador da Califórnia por incêndios
Peixe nativo do Estuário de São Francisco virou símbolo da disputa de narrativas envolvendo ambientalistas e setores políticos e econômicos
À medida que a Califórnia ainda começava a entender que estava diante de um dos maiores incêndios florestais de sua História, o presidente eleito dos EUA, Donald Trump, já elegia aqueles que considerava culpados pela crise. Ignorando as opiniões de especialistas sobre as condições no terreno e o impacto das mudanças climáticas no que foi descrito por alguns veículos da imprensa americana como uma "tempestade de fogo", Trump e seus aliados republicanos culparam o governador democrata Gavin Newsom — cotado como candidato à Casa Branca em 2028 — e o Delta smelt, um peixe de poucos centímetros de comprimento, em risco de extinção, pela incapacidade das autoridades controlarem as chamas.
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"O governador Gavin 'Newscum' [um trocadilho pejorativo com o sobrenome de Newsom] se recusou a assinar a declaração de restauração de água apresentada a ele que teria permitido que milhões de galões de água, do excesso de chuva e derretimento da neve do Norte, fluíssem diariamente para muitas partes da Califórnia, incluindo áreas que estão atualmente queimando de forma virtualmente apocalíptica. Ele queria proteger um peixe essencialmente inútil chamado smelt", escreveu Trump em uma publicação da Truth Social, na quarta-feira, enquanto as chamas se alastravam. "Ele é o culpado por isso. Além de tudo, não há água para hidrantes, nem aviões de combate a incêndio. Um verdadeiro desastre!".
Citado por Trump, o Delta smelt é um peixe nativo pequeno e de vida curta, encontrado apenas no Estuário de São Francisco, segundo o U.S. Fish & Wildlife Service. Colocado na lista de espécies ameaçadas de extinção em 2010, sua presença é utilizada como um indicador ambiental, e se torna cada vez mais rara. Na Califórnia, o animal se tornou uma espécie de símbolo dos embates entre setores da classe política e empresarial e ambientalistas.
A equipe do governador afirmou que a narrativa exposta por Trump era falsa. Izzy Gardon, diretor de comunicação do Gabinete de Newsom, classificou em como "ficção pura" o comentário do presidente sobre a apresentação de um "documento de declaração de restauração de água" ao governador. O próprio democrata, por sua vez, também refutou a acusação de Trump ao ser questionado durante uma entrevista na CNN.
— As pessoas estão literalmente fugindo, pessoas perderam suas vidas, crianças perderam suas escolas, famílias completamente despedaçadas, igrejas queimadas. E esse cara quer politizar isso — disse Newsom. — Tem muitas coisas que eu estou pensando sobre o que quero dizer, e não vou.
A mensagem do presidente eleito foi publicada em um momento em que autoridades demonstravam preocupação com as reservas de água para combater os três focos de incêndio até então ativos nos arredores de Los Angeles — a oeste, no luxuoso bairro de Pacific Palisades, a leste, nos arredores de Pasadena, e a norte, no Vale de São Fernando. Bombeiros afirmaram em declarações à imprensa que o combate com as chamas estava sendo dificultado pela pressão inconstante em hidrantes e outras reservas de água, o que parece ter impulsionado a narrativa de Trump.
Especialistas, contudo, negaram que a questão do abastecimento de água do sul da Califórnia tivesse qualquer relação com as medidas de preservação ao peixe. A própria dimensão dos incêndios, com o consumo abundante das reservas pré-existentes, e a necessidade de continuar utilizando os recursos enquanto os reservatórios ainda eram reabastecidos sobrecarregaram o sistema.
Mark Gold, diretor de escassez de água do Natural Resources Defense Council, classificou como "irresponsáveis" os comentários de Trump sobre o sistema de abastecimento de água na Califórnia. De acordo com Gold, o sistema local tem a maior reserva de água da História.
— Não é uma questão de ter água suficiente vinda do norte da Califórnia para apagar um incêndio. É sobre os impactos devastadores contínuos de um clima em mudança — disse.
Embora a Califórnia seja historicamente vulnerável a incêndios florestais, cientistas comprovaram que desde 2020 as chamas tem se espalhado quatro vezes mais depressa do que há 20 anos. No caso do incêndio desta semana, os distintos focos foram potencializados por um ambiente mais seco do que o normal e rajadas de vento que alcançaram 160 km/h. A realidade se encaixa nas previsões sobre o impacto das mudanças climáticas, que têm intensificado vento, seca e temperatura; combinadas à ação humana, com a ocupação de áreas de risco ao fogo.
— Culpar as proteções do Delta smelt se tornou uma resposta comum aos problemas ambientais na Califórnia para vários políticos de direita, particularmente o presidente Trump — disse Caleb Scoville, um sociólogo da Tufts. — A verdade é que levar espécies nativas à extinção não teria evitado isso e não faria nada para ajudar o povo de Los Angeles. É pura fantasia, mas politicamente conveniente. (Bloomberg e NYT)