Atendimentos on-line e domiciliar possibilitam nova relação entre profissional de saúde e paciente
Entre as tantas mudanças que a pandemia do novo coronavírus provocou, uma delas foi tornar mais acessível as consultas via on-line ou domiciliar
Com o avanço da pandemia do coronavírus, a relação médico-paciente passou por abruptas mudanças, sobretudo devido à nova etiqueta social que restringe o contato entre as pessoas. Em questão de dias, os profissionais da área de saúde precisaram lançar um olhar ainda mais humano para aqueles que estão sob seus cuidados. Do outro lado, quem está precisando de atendimento se vê em busca de sinais que possam lhe dar motivos para confiar no especialista. Passado pouco mais de um ano do início da crise sanitária, médicos e pacientes continuam redescobrindo formas de criar e fortalecer o vínculo.
Apesar de já ter recorrido ao atendimento domiciliar para a mãe antes pandemia, a advogada Flávia Teixeira, 51 anos, confessa que durante a crise sanitária precisou fortalecer a relação com os profissionais que iam à residência da família. “Criar um elo a ponto de abrir nossa casa para recebê-los é muito importante devido à situação delicada de nossa mãe. No começo da pandemia foi um pouco amedrontador porque era algo novo. Por isso, ter uma relação de confiança com médicos, enfermeiros e cuidadores fez a diferença. Hoje posso dizer que o atendimento domiciliar possibilita um vínculo maior”, comenta.
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Uma das profissionais que atende a mãe da advogada é a dentista Renata Tinoco, que há cerca de cinco anos se especializou em odontologia domiciliar. Ela conta que durante a pandemia o maior desafio foi ter reconquistar a confiança de algumas pessoas que já atendia e criar novos elos com pacientes e familiares interessados no serviço. “Sempre trabalhei muito com biossegurança, mas com o surgimento do coronavírus os cuidados redobraram. Levo maletas, equipamentos e tudo isso precisou passar por novos processos de higienização. As pessoas então passaram a ter mais confiança”, fala.
Por outro lado, há os mais resistentes. Acostumada às consultas presenciais, a aposentada Carmem de Souza, 62 anos, se viu em um dilema quando precisou de uma consulta clínica nos primeiros meses da pandemia. “Para não ter que sair de casa precisei recorrer a uma consulta por telefone. Como o médico que costumo ir frequentemente estava de férias, precisei falar com outro, mas não conseguia ficar à vontade com a situação. Sou daquelas que analisa até os gestos para tentar saber se ele está sendo totalmente sincero comigo ou amenizando a situação para me tranquilizar e por telefone não seria possível”, afirma.
Carmem foi uma das 108 mil pessoas beneficiadas pelo Atende em Casa, da Prefeitura do Recife, que além da orientação de pessoas com sintomas suspeitos de Covid-19, oferece apoio emocional com psicólogos, orientação sobre agendamento e resultados de exames e ajuda para o cadastro da vacinação. Em cerca de um ano e um mês, mais de 75,6 mil atendimentos por médicos e enfermeiros foram realizados através de chamadas de vídeo ou telefone, fazendo com que a maioria das pessoas que utilizaram o aplicativo respeitassem o isolamento domiciliar, evitando deslocamentos desnecessários.
Ouvir é fundamental
O atendimento a distância, ou virtual, passou a ser uma alternativa, mas, infelizmente, para muitos essa tecnologia pode não ser adequada ou acessível. Apesar de não ser inédito, o procedimento é útil para resolver problemas de saúde não emergenciais. No entanto, sempre foi alvo de críticas e controvérsias. O motivo? O profissional de saúde fica sem acesso a detalhes como a postura corporal e expressões faciais, ou até o modo de caminhar e sentar dos pacientes, sinais que podem ajudar no diagnóstico de doenças. Daí a necessidade de investir ainda mais na escuta do paciente.
“Um dos fundamentos da medicina é a inspeção, que consiste em olhar, ver o paciente. O outro chama palpação, que é examinar com o toque. Há ainda a percussão que também consiste em uma maneira diferente de examinar com o toque. A outra é ausculta. Então, a gente percebe que de quatro fundamentos básicos do exame físico ao doente a gente perde três à distância. A gente precisa se reinventar, entender e criar modos alternativos que compensem essa perda na interação com o paciente”, comenta o conselheiro do Conselho Regional de Medicina de Pernambuco Everton Abreu.
Ou seja, um dos impactos do distanciamento ocorre na dimensão afetiva. Apertar a mão ou mesmo abraçar são atos que acolhem e estabelecem a confiança. “Ainda estamos em adaptação, mas já percebemos que algumas coisas melhoram bastante nossa relação com pacientes e familiares, entre elas as videochamadas. Com artifícios como esses tentamos compensar a ausência do toque com um diferencial no ouvir”, acrescenta Abreu, que também é médico intensivista e membro da diretoria da Sociedade de Terapia Intensiva de Pernambuco (Sotipe).
Everton Abreu ressalta que, no caso do Sistema Único de Saúde (SUS), cabe ao poder público oferecer uma estrutura que possa realmente garantir um canal de comunicação adequado e de boa qualidade para que os dois atores dessa interação médico-paciente consigam interagir sem perdas. Assim, os recursos tecnológicos poderão fortalecer o elo entre médico-paciente. Em Pernambuco, foram ofertadas cerca de 21 mil teleconsultas entre os meses de março de 2020 a março de 2021, por meio do Núcleo Estadual de Telessaúde da Secretaria Estadual de Saúde (SES).
Crianças diagnosticadas com Síndrome Congênita do Zika, outras doenças raras e deficiências foram as primeiras contempladas com estas teleconsultas. Também foram realizados o telemonitoramento de 73 crianças e familiares com síndrome gripal para encaminhamento via teleconsulta com infectologista de referência. Outro exemplo é a Teleoncologia de Pernambuco (Teleonco-PE), que presta assistência especializada e integral aos pacientes com câncer. Atualmente, quatro hospitais estaduais contam com o serviço, entre eles o Barão de Lucena, no Recife, e Mestre Vitalino, em Caruaru.
Formação deixa a desejar
Profissionais de saúde que já exercem suas profissões há alguns anos são praticamente unânimes ao afirmar que durante o curso não foram capacitados para as formas de atendimento exploradas durante a pandemia. Mas, infelizmente, esta não é uma realidade que ficou no passado. O diretor do Centro de Ciências Médicas - Faculdade de Medicina do Recife da UFPE, Silvio Caldas, afirma que o atendimento médico remoto, por exemplo, ainda não foi plenamente incorporado aos projetos pedagógicos dos cursos de medicina de maneira geral, mas há iniciativas que amenizam essa falta de capacitação.
“No caso da UFPE existe uma atividade muito intensa na área de telemedicina há alguns anos realizada pelo Centro de Ciências Médicas e o Hospital das Clínicas, por meio do Núcleo de Telessaúde (Nutes). Não é uma atividade que esteja incorporada ao projeto pedagógico do curso, mas todos os alunos têm a oportunidade de participar. Com a pandemia isso se intensificou assustadoramente”, comenta Caldas. Ele acrescenta que este novo universo está sendo experimentado não apenas pelos alunos que estão em formação, mas também pelos professores.
O diretor do Centro de Ciências Médicas chama destaca que estreitar ou não a relação médico-paciente existe um viés particular nesta pandemia. “Quando fazemos uma consulta remota com o paciente somos cúmplices de um grande problema do qual estamos todos sendo afetados. Existe uma ligação afetiva maior porque estamos todos vivendo no meio da mesma tempestade. Então, em determinadas ocasiões a pandemia pode trazer uma melhor relação de afeto entre as pessoas. Médico e paciente podem acabar criando um vínculo mais forte por estarem se encontrando na intimidade de seus lares, por exemplo”, explica.
Atitudes que fortalecem o vínculo
Profissionais de saúde são vistos como uma espécie de porto seguro e em um estado crítico de saúde populacional como o que estamos passando nesta pandemia a relação médico-paciente não pode ficar em segundo plano. De acordo com a psicóloga Maria Fernanda Almeida, nos atendimentos remotos o profissional deve focar sempre em passar para o paciente que está disponível para ele naquele momento. “Não é porque está em casa que vai ficar desarrumado ou fazendo outras coisas no momento do atendimento. Precisamos estar prontos para atender como se estivéssemos no consultório. Isto é fundamental para que o processo flua e o paciente se sinta mais à vontade”, orienta.
Ainda de acordo com a especialista, os pacientes que têm resistência ao atendimento on-line devem olhar esse serviço de uma forma diferente, pelo comodidade. “Hoje em dia, além de a gente estar vivendo uma pandemia, a gente tem toda questão de logística, se locomover para o consultório, estacionar, pegar ônibus lotados… São questões que devem ser levadas em consideração principalmente por conta da pandemia”, comenta. Ainda segundo a psicóloga, o paciente deve buscar um lugar que se sinta confortável para fazer o atendimento, facilitando a interação com o profissional do outro lado da chamada. “Cuidados como este ajudam médico e paciente a manterem um bom diálogo e facilitam o fortalecimento da relação”, acrescenta.