Vacinas contra câncer: Rússia anuncia doses para 2025, mas sem transparência sobre estudos; entenda
Governo disse apenas ter completado testes pré-clínicos dos imunizantes
O governo russo anunciou, nesta semana, que dará início à oferta gratuita de vacinas terapêuticas contra o câncer em 2025, o que repercutiu rapidamente nas redes como uma nova esperança no combate a uma doença que mata cerca de 10 milhões de pessoas anualmente, segundo a OMS.
Embora as doses não tenham estudos clínicos publicados que comprovem a segurança e a eficácia, o plano é lançá-la ainda no início do ano, disse o diretor geral do Centro de Pesquisa Médica em Radiologia do Ministério da Saúde da Rússia, Andrey Kaprin, segundo a agência de notícias estatal Tass.
A dose utiliza a tecnologia de RNA mensageiro (RNAm), a mesma empregada nos imunizantes contra a Covid-19 da Pfizer/BioNTech e da Moderna, e que vem sendo estudada por outras farmacêuticas para o combate a tumores.
No final de novembro, a diretora da Agência Federal de Medicina e Biologia (FMBA, da sigla em inglês) do país, Veronika Skvortsova, falou que foram quase três anos de testes.
Leia também
• Fabiana Justus reflete sobre o ano e sua jornada contra o câncer: "Sofrido"
• Ultraprocessados ricos em óleo podem ser uma das causas da 'epidemia de câncer colorretal' em jovens
• Câncer: Anvisa aprova avanço de testes com terapia revolucionária desenvolvida no Brasil
Porém, sem mais detalhes divulgados ou a publicação de estudos, não há informações exatas sobre para quais tipos de câncer a vacina será destinada. Além disso, não foi esclarecido se a oferta das doses será já como tratamento para a população ou como parte de testes clínicos em humanos. A falta de transparência é motivo de crítica entre os especialistas:
— É bem provável que existam estudos em andamento com o uso desta tecnologia, mas o ideal seria entender como esse procedimento será realizado. Acredito que deva estar sendo planejado um estudo com uma amostragem de pacientes, e não a aplicação da vacina direta para a população como uma terapia já aprovada para uso — avalia Maria Ignez Braghiroli, oncologista clínica e membro do Comitê de Tumores Gastrointestinais da Sociedade Brasileira de Oncologia Clínica (SBOC).
O desenvolvimento de novos medicamentos, como remédios e vacinas, envolvem diversas etapas de estudos necessárias para que agências reguladoras analisem a segurança e eficácia do produto e o aprovem para a venda. Após ser desenvolvido, o medicamento é submetido a testes pré-clínicos, com animais em laboratório, e depois a pelo menos três etapas de estudos clínicos, com humanos.
Os dados desses testes são publicados, após análises, em revistas científicas, o que garante a confiabilidade das informações. Além disso, eles são encaminhados ao fim dos estudos para a agência reguladora, como a Anvisa no Brasil, que os avaliará para decidir sobre a aprovação do medicamento.
Em junho, o ministro da Saúde russo, Mikhail Murashko, disse que os testes pré-clínicos, com animais em laboratórios, tinham previsão para terminar apenas neste ano e que a expectativa era "obter os primeiros resultados até o final do ano e iniciar os testes clínicos".
Quando a criação da vacina foi anunciada, em abril, Veronika mencionou testes para câncer colorretal, melanomas e glioblastomas. De acordo com Murashko, a dose foi desenvolvida em conjunto por cientistas do Centro Nacional de Pesquisa em Epidemiologia e Microbiologia Gamaleya, do Instituto de Pesquisa Oncológica Hertsen de Moscou e do Centro de Pesquisa do Câncer Blokhin.
O diretor do Gamaleya, Alexander Gintsburg, disse à TASS que os ensaios pré-clínicos da vacina demonstraram que ela suprime o desenvolvimento de tumores e possíveis metástases. Em novembro, a diretora da FMBA afirmou que experimentos com animais com adenocarcinoma intestinal altamente maligno, um tipo grave de câncer colorretal, teriam apresentado uma redução de 75% a 80% dos tumores após o imunizante. Porém nenhum dado foi publicado.
Como as vacinas funcionam?
As vacinas terapêuticas de RNAm têm avançado no campo da medicina. De modo diferente dos imunizantes tradicionais, que buscam preparar o corpo para uma doença infecciosa, essas doses atuam fazendo com que o sistema imunológico reconheça o tumor para atacá-lo — algo que não acontece naturalmente porque as células cancerígenas têm uma capacidade de sinalizar para as imunes que são “saudáveis” e, com isso, escapar das defesas do organismo.
Para isso, retira-se uma proteína (antígeno) do tumor de determinado paciente que, então, é utilizada na formulação de uma dose para apresentá-la ao sistema imunológico. Dessa forma, a vacina faz com que ele reconheça o material genético daquele câncer e produza defesas contra ele. A dose é individualizada para cada paciente.
No caso específico da técnica de RNAm, em vez de a vacina entregar diretamente a proteína, algo que não teve resultados promissores com candidatas passadas, ela fornece uma espécie de manual de instruções, que é o RNA mensageiro, para que o próprio corpo produza a proteína que será lida pelo sistema imunológico.
— O RNA mensageiro leva a informação do nosso código genético para designar quais os aminoácidos e qual a sequência que devem compor as proteínas. Então essa tecnologia permite a formação de proteínas de acordo com a necessidade desejada. Geralmente, o que se idealiza é identificar os neoantígenos tumorais (proteínas que podem ser reconhecidas pelo sistema imune) e selecionar os mais promissores. A sequência de RNA mensageiro é injetada no paciente para gerar essas proteínas que vão estimular o sistema imune formar a resposta do sistema imunológico contra o tumor — explica a oncologista da SBOC, uma das autoras do Guia de Vacinação no Paciente Oncológico da entidade.
Outras vacinas em testes
Outros laboratórios que também desenvolvem vacinas terapêuticas para o câncer com a tecnologia de RNAm têm publicado os resultados dos testes em revistas científicas. A mais avançada, na última etapa dos estudos, é uma contra o melanoma, câncer de pele mais agressivo, da americana Moderna em parceria com a MSD.
Dados da fase 2, publicados na The Lancet, mostraram que a vacina proporcionou uma redução de 49% no risco de morte ou recorrência, e de 62% no de morte ou metástase. Além disso, o laboratório americano está nos estágios finais dos estudos clínicos de uma vacina contra o câncer de pulmão de células não pequenas e de câncer de bexiga.
Outro laboratório que lidera a criação de imunizantes de RNAm é o alemão BioNTech, que foi pioneiro com a Moderna nas vacinas da Covid-19. Lá, também estão sendo desenvolvidas doses avançadas contra o melanoma e o câncer de pulmão de células não pequenas, além de aplicações para carcinoma de células escamosas de cabeça e pescoço, câncer colorretal e adenocarcinoma ductal pancreático (um dos tumores mais letais).
Dados iniciais da dose contra o câncer de pâncreas, doença com apenas 13% de chance de sobrevivência, já apontam que, três anos depois da aplicação, metade dos pacientes que receberam a vacina ainda tinha uma resposta imunológica, o que foi associada a uma sobrevida mais longa e um risco menor de retorno do tumor.
No Brasil, a Fiocruz também tinha um projeto de vacina para tratamento do câncer com RNAm, mas que foi pausado para direcionar o foco para a pandemia da Covid-19. Neste ano, os pesquisadores retomaram o estudo. Em estágio ainda muito inicial, já selecionaram proteínas de um tipo de câncer de mama.
Especialistas ouvidos pelo Globo avaliam que as primeiras doses contra o câncer devem receber uma aprovação no mundo até 2030, com base no andamento e na divulgação dos testes clínicos. A vacina russa, no entanto, não tem transparência em relação aos dados dos estudos ou a uma possível análise do órgão regulador do país.