Vape: especialistas celebram decisão da Anvisa de manter cigarros eletrônicos proibidos no Brasil
Com 3 votos garantidos, diretoria da agência aprovou norma que estende o veto aos dispositivos no Brasil, definido em 2009
Em reunião nesta sexta-feira, a Diretoria Colegiada (Dicol) da Anvisa aprovou, com 3 votos a favor até o momento, ou seja, maioria simples dos 5, o texto que mantém os cigarros eletrônicos proibidos no Brasil. Especialistas ouvidos pelo Globo elogiaram a decisão, apontando o potencial dos aparelhos em tornar dependentes indivíduos que não faziam uso do cigarro convencional, especialmente os mais jovens, e reverter o significativo avanço do Brasil na redução do tabagismo.
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— Eu recebo com júbilo como médica, como membro da sociedade civil, em todos os sentidos. O Brasil dá um exemplo de proteção da vida humana para o resto do mundo. Mesmo os países que liberaram os dispositivos estão tendendo a voltar atrás. Essa norma é motivo de muita satisfação. Recebo com muito alívio, mas tinha muita confiança na qualidade das manifestações que nossa agência regulatória tem mantido nos últimos anos — diz a presidente da Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia (SBPT) e pesquisadora da Fiocruz, Margareth Dalcolmo.
O vice-presidente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), Cláudio Maierovitch, ex-presidente da Anvisa entre 2003 e 2005 e médico sanitarista da Fiocruz, também elogia a decisão e cita um alinhamento com as medidas brasileiras que levaram o país a ser um exemplo no combate ao cigarro tradicional.
— É uma decisão importante. Desde que vem reavaliando esse tema, a Anvisa vem conduzindo de maneira exemplar, coerente com toda a participação que o Brasil teve na Convenção-Quadro para o Controle do Tabaco, da OMS. O Brasil é sempre lembrado como um dos países que mais conseguiu avançar no controle do tabagismo. Todas nossas estatísticas de tabaco vinham melhorando desde então, até o surgimento do cigarro eletrônico — avalia.
Há 35 anos, em 1989, 34,8% da população adulta era fumante no Brasil, de acordo com a Pesquisa Nacional sobre Saúde e Nutrição (PNSN) da época. Esse percentual caiu ano a ano com medidas como aumento de impostos e proibição da publicidade até chegar a abaixo de 10%, em 2018. Desde então, tem se mantido entre 9% e 10% – em 2023, segundo o levantamento Vigitel, do Ministério da Saúde, 9,3% dos brasileiros com mais 18 anos fumavam.
O país foi o primeiro, junto à Turquia, a chegar ao estágio mais alto de adesão às políticas antitabagistas da OMS. De acordo com o último relatório sobre o tema, do ano passado, são apenas quatro os países que alcançaram o feito. No entanto, com os vapes é observada uma tendência contrária: segundo o Ipec, 2,9 milhões de adultos utilizavam os aparelhos em 2023 (1,8% da população), enquanto quatro anos antes eram menos de 500 mil (0,3%) - crescimento de 600%.
— Apoiamos a decisão da Anvisa, está alinhada com as evidências científicas disponíveis. Os produtos são nocivos à saúde e estão sendo muito consumidos por jovens, e a maior parte por indivíduos que não eram fumantes anteriormente. E já temos muitas evidências sobre danos pulmonares e cardiovasculares ligados a esses aparelhos, que estão se manifestando de forma até mais rápida do que com o cigarro convencional — afirma a diretora-geral da ACT (Aliança de Controle do Tabagismo) Promoção da Saúde, Mônica Andreis.
Em mensagem enviada à Anvisa, exibida antes da votação sobre o tema, o diretor de Promoção da Saúde da OMS, Ruediger Krech, também citou o exemplo do país contra o tabagismo ao fazer um apelo para que o veto aos vapes fosse mantido.
— Nos últimos anos, produtos como os de tabaco aquecido e os cigarros eletrônicos foram introduzidos em muitos países e estão sendo agressivamente comercializados inclusive para crianças e adolescentes (...) O Brasil está entre os países que estão sendo pressionados pela indústria do tabaco e afins para maximizar o lucro sobre a saúde pública por meio do fim dessa proibição — disse.
De acordo com a última Pesquisa Nacional de Saúde do Escolar (PeNSE), realizada em 2019 pelo IBGE, 16,8% dos adolescentes de 13 a 17 anos já experimentaram o cigarro eletrônico no Brasil. Entre a faixa de 18 a 24 anos, a pesquisa Covitel, do ano passado, mostra que o percentual é de 23,9% - e que a principal motivação, para 20,5%, foi “experimentar/curiosidade”.
O que dizem as novas regras da Anvisa sobre vape?
Os dispositivos têm a importação, a comercialização e a propaganda proibidas no país desde 2009. O tema, porém, começou a ser reavaliado em 2019. Em 2022, após receber contribuições sobre o tema, o corpo técnico do órgão emitiu um relatório parcial de Análise de Impacto Regulatório (AIR) em que defendeu a manutenção do veto.
Como parte da discussão, foi aberta uma consulta pública, no fim do ano passado, para receber manifestações da sociedade civil sobre a proposta. Apenas 37,4% das 13.930 manifestações foram favoráveis à proibição. Porém, na análise por segmentos, 61,3% dos profissionais da saúde concordaram com a medida, e 54,5% das entidades de defesa do consumidor.
A nova norma, que substitui a de 2009, define que a fabricação, a importação, a comercialização, a distribuição, o armazenamento, o transporte e a propaganda de Dispositivos Eletrônicos para Fumar (DEFs) seguem proibidos no país.
O texto é maior que o anterior, com informações mais claras sobre o veto. Define, por exemplo, que os DEFs são qualquer “produto fumígeno cuja geração de emissões é feita com auxílio de um sistema alimentado por eletricidade, bateria ou outra fonte não combustível, que mimetiza o ato de fumar”.
Além disso, esclarece que também são proibidos “quaisquer acessórios, peças, partes e refis destinados ao uso com/em dispositivo eletrônico para fumar”. Menciona ainda que ingressar no país com um aparelho, mesmo que na bagagem acompanhada, e utilizar os dispositivos em ambientes coletivos fechados também são práticas vetadas.
O descumprimento das normas constitui infração sanitária e está sujeito a penalidades como apreensão dos produtos e multa. O texto diz que a “Anvisa realizará periodicamente revisões sistemáticas da literatura sobre o tema, sempre que houver justificativa técnico-científica”.
— O que não temos hoje é muita intensidade na execução da norma em si, na ação de fiscalização sobre contrabando, comercialização dos dispositivos e dos seus insumos. Há todo um aparato de repressão às drogas ilícitas, e nós deveríamos ter um esforço no mínimo equivalente para coibir a entrada e venda dos cigarros eletrônicos — defende Maierovitch.
Andreis, da ACT, concorda, mas acredita que a proibição já atua como uma mensagem: — Quando temos a permissão, existe uma compreensão geral de que, de alguma forma, aquele produto foi chancelado pela Anvisa. A proibição inibe o consumo, as pessoas ficam mais receosas, e evita uma distribuição em larga escala. Hoje temos o mercado ilegal, mas a rede de distribuição do cigarro tradicional, por exemplo, é muito maior.
Para Dalcolmo, além da fiscalização, é importante que seja pensado também em formas de ampliar estratégias de comunicação, voltadas especialmente para os jovens, que transmitam os riscos dos dispositivos. Medidas do tipo foram citadas pelo diretor-presidente da Anvisa e relator do processo, Antonio Barra Torres, durante a reunião, que mencionou parcerias com ministérios como o da Saúde e da Educação.
— O que hoje está sendo permitido no Brasil é uma desmoralização à medida que se consegue comprar os vapes em qualquer lugar. Caberá aos órgãos fiscalizatórios darem continuidade e serem mais eficientes no trabalho e apreender os produtos. Porém, mais do que isso, é preciso uma comunicação muito mais eficaz com os jovens por parte de médicos, escolas, famílias, grupos da sociedade civil para usar todos os mecanismos de informação da melhor maneira possível — diz a presidente da SBPT.
Substituto do cigarro convencional
Quem defende a liberação do cigarro eletrônico cita um suposto benefício como substituto do modelo tradicional. Em países como no Reino Unido e na Suécia, autoridades de saúde passaram a recomendar aos fumantes que façam a troca, e uma análise da Agência de Segurança em Saúde do Reino Unido (UKHSA) sugeriu que os vapes seriam até 95% menos nocivos do que os modelos tradicionais.
No entanto, essa evidência tem sido questionada. Um estudo da Universidade John Hopkins, nos Estados Unidos, encontrou milhares de químicos desconhecidos nos aparelhos, que não eram listados pelas fabricantes. Outro trabalho, publicado na revista científica Cancer Research no mês passado, revelou que usuários de cigarros eletrônicos apresentam alterações de DNA em células específicas da bochecha semelhantes às dos fumantes convencionais.
Diante desse cenário, a OMS não recomenda a substituição e incentiva a implementação de regras mais duras, como a proibição. "Os cigarros eletrônicos são frequentemente promovidos como uma alternativa menos prejudicial aos cigarros convencionais; no entanto, até o momento, não foi comprovado que o consumo tenha trazido um benefício para a saúde pública", disse o órgão em nota técnica no fim do ano passado.
— O que vemos na realidade é um aumento assustador do uso por crianças e adolescentes que foram introduzidas ao mundo do tabaco pelo vape, e não um uso por pessoas que trocam o cigarro convencional pelo eletrônico. E isso seria também trocar um vício pelo outro, não temos qualquer confiança em dizer que o eletrônico tenha menos riscos. O Reino Unido mesmo tem revisto suas leis, buscando dificultar o acesso aos dispositivos — diz Maierovitch.
Ele cita, por exemplo, a medida recente, em votação no parlamento britânico, que busca impedir que todos os nascidos a partir de 2009 possam comprar produtos de tabaco. Dados mais recentes do Escritório Nacional de Estatísticas (ONS) do Reino Unido mostram que o maior consumo de cigarro eletrônico realmente ocorre entre jovens de 16 e 24 anos, em que o percentual de usuários aumentou de 11,1% para 15,5% de 2021 para 2022. Enquanto isso, o número daqueles que usam o cigarro convencional com 16 anos ou mais caiu apenas de 13,2% para 11,6% no mesmo período.
Maierovitch defende ainda que um problema nesse discurso de que os vapes seriam uma estratégia de redução de danos é que o aparelho é construído e vendido para ser atraente, logo causar dependência: — Não há coerência nessa fala quando há um esforço para tornar os vapes cada vez mais agradáveis com saborizantes, flavorizantes e quantidades enormes de nicotina que muito rapidamente podem causar dependência química.