Vencedora do Slam BR 2019, Kimani tem viagem cancelada para o campeonato mundial de poesia falada na
Kimani -nome artístico da poeta Cinthya Santos, foi a escolhida para representar o país no campeonato mundial de poesia falada, em Paris, na França
Estava tudo pronto. As passagens tinham chegado ao email, o passaporte havia sido retirado na Polícia Federal e algumas roupas já estavam separadas para a primeira viagem internacional de Kimani -nome artístico da poeta Cinthya Santos, que venceu o torneio brasileiro de slam no ano passado e foi escolhida para representar o país no campeonato mundial de poesia falada, em Paris, na França. Mas no meio do caminho tinha uma pandemia de coronavírus.
Se não fossem quarentenas e isolamentos ao redor do mundo, a escritora teria desembarcado na Europa no início de maio. Nesta segunda (18), assistiria à abertura do mundial de slam, que reúne 21 poetas de países que vão da Inglaterra à Costa Rica, do Mali à Polônia, do Brasil à anfitriã França. Nos próximos sete dias, esses autores subiriam aos palcos franceses, onde declamariam seus poemas e seriam avaliados eliminatoriamente por um grupo de jurados. Até que sobraria apenas um, que voltaria para casa com o troféu de campeão mundial de slam.
Mas Kimani não está em Paris. Aos 27 anos, a autora fala com este repórter por WhatsApp, direto de sua casa, na zona oeste de São Paulo. "Foi tudo muito rápido. Em dezembro, estava tudo bem, eu tinha acabado de vencer o Slam BR, aquela euforia toda. Três meses depois, o mundo inteiro estava trancado dentro de casa", conta. "No começo, os organizadores do campeonato mundial até tentaram manter a competição presencial, mas as coisas foram se agravando e viram que era impossível."
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Impossibilitado de ocorrer como nos outros anos, com plateias cheias e escritores em cima do palco, o mundial de slam foi mais um dos eventos culturais afetados pelo novo coronavírus ao redor do mundo –e, como tantos outros, será organizado excepcionalmente online, a partir desta segunda, com cada participante trancafiado em sua própria casa, em seu próprio país.
"Não é o slam que a gente aprendeu. Slam é encontro", fala Kimani, que vai fazer sua primeira participação nesta terça (19), às 16h do horário de Brasília, contra poetas do Japão, da Espanha, do México e da Escócia. Surgido em um bar de Chicago em 1986, o "poetry slam" é ao mesmo tempo uma competição de poesia falada e um microfone aberto para pessoas declamarem seus textos. As regras podem variar de evento para evento, mas seguem um padrão.
Cada poeta tem só três minutos para apresentar seu poema, sobre qualquer tema.Não é permitido nenhum acompanhamento, seja ele musical, de figurino ou de cenário -é apenas o microfone e o escritor, que é julgado por cinco pessoas pinçadas aleatoriamente na plateia. As notas para cada poema vão de zero a dez. Como na apuração das escolas de samba no Carnaval, a maior e a menor avaliação são descartadas. As três restantes formam a nota final. Quem conseguir a maior pontuação é o campeão.
Sem a possibilidade de escolher um juri entre quem assiste ao evento, a versão online do torneio mundial terá um quadro fixo de jurados.
Para Kimani, porém, as novas regras e o modelo a distância deram um caráter elitista à disputa. "Primeiro porque, se sua internet cair, você precisa se reconectar em até cinco minutos para não ser desclassificado. Isso é um recorte social bem claro, beneficia aqueles que moram em regiões com mais estrutura, em países onde a internet é mais estável", afirma.
"E tem ainda a questão da tradução. Se você não declama seus poemas em francês, precisa entregar versões em inglês para a organização, que faz a tradução indireta para o francês. Muita coisa se perde aí, as gírias, o ritmo, o contexto social. Por isso que os campeões são sempre poetas que falam inglês ou francês", diz.
Nos encontros de slam que se multiplicam pelo Brasil, é quase impossível separar a crítica social da literatura. Os poemas apresentados são sempre carregados de revolta, indignação, manifesto, dedo apontado para opressões sofridas por populações das periferias ou que vivem às margens.
Kimani conta que, por isso, escolheu uma mulher negra que conhece religiões de matriz africana para traduzir os seis poemas que vai apresentar no mundial. "A ideia é apresentar textos mais reflexivos nas primeiras fases para conseguir avançar de etapa. Não posso colocar o dedo na ferida logo de cara, porque meus poemas falam de opressão -de certa forma, falam dos jurados. Não dá pra já chegar já apontando o dedo para quem vai me dar nota. Vou começar mais pianinho e depois... pá!"
Mas se o evento ficou elitista e perdeu o caráter de encontro, que é o combustível do slam, por que participar do mundial? "Pensei muito sobre isso. Decidi fazer parte porque sou uma das únicas latino-americanas e acho que devemos ser representados", diz Kimani. Além do Brasil, participam apenas Costa Rica e México entre países da região.
Enquanto os versos da escritora só chegam à França via internet, a organização do Slam BR, que financia anualmante a viagem do campeão nacional da modalidade para o mundial, tenta remarcar a passagem da poeta para 2021. "Para pelo menos passear por lá, conhecer a Torre Eiffel."