Suporte

Viva o SUS: crise sanitária estreita laços dos brasileiros com sistema de saúde

Pandemia nivelou saúde pública e privada; campanha de imunização e postos de testagem causam boa impressão na população

Importância do SUS foi escancarada durante a pandemia de Covid-19Importância do SUS foi escancarada durante a pandemia de Covid-19 - Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

Na última terça-feira, a publicitária Anna Sant’Anna foi com o marido, Charles Nobili, e os dois filhos, Conrado, de 9 anos, e Francisco, de 7, tomar vacina contra a Covid-19 em um posto de saúde na Vila Madalena, em São Paulo. Na saída, o mais velho perguntou aos pais:

Mas não tem que pagar?

Um serviço bom e gratuito ainda é algo que provoca surpresa no Brasil, mas é o que famílias como a de Anna e Charles têm encontrado no Sistema Único de Saúde (SUS). Reconhecendo a importância do sistema na assistência às vítimas da pandemia e na campanha de vacinação, a população passou a valorizar o SUS como nunca ocorreu na história do país.

— Sabemos das filas, demora e condições precárias em muitos lugares. Então, usamos o sistema privado, mas depois dessa ótima experiência nos postos, pretendo passar a usar para coisas pontuais, mesmo tendo plano de saúde —diz Anna.

A aproximação do brasileiro com o sistema é refletida no Índice de Confiança Social de 2021, do Ipec, instituto de pesquisa que sucedeu ao Ibope, que aponta um crescimento significativo da confiabilidade no serviço público: numa escala de 0 a 100 — na qual zero significa “nenhuma confiança” e cem, “confiança absoluta” — o SUS tinha um índice de 45 no levantamento realizado em 2019. Na pesquisa de 2020, o número saltou para 56 e, no ano passado ,ficou em 57. Desde que o índice passou a ser avaliado, em 2009, o sistema só conquistou mais de 50 pontos nos últimos dois anos.

O SUS se configura como o maior sistema público do país, com cerca de 60 mil unidades ambulatoriais e 6 mil unidades hospitalares. A cada ano, são realizadas 150 milhões de consultas médicas.

O afastamento do músico carioca Flávio Dana, 59, dessa rede gigantesca durou mais de 20 anos, época que as filhas cumpriam o calendário de vacinação infantil. No ano passado, ele voltou ao sistema para tomar sua primeira dose contra a Covid em um posto em Sepetiba, onde também levou seu pai. Já com a mãe, foi a um posto drive-thru na Barra da Tijuca. Depois, vieram segundas e terceiras doses. O serviço foi aprovado todas as vezes.

— Fiquei surpreendido. Me impressionou a capacidade de organização. Fui testemunha da competência do SUS para atender uma grande demanda. — afirma o músico.

A família ganhou confiança e, na hora que sua mulher precisou fazer um teste para Covid, decidiu procurar um posto de saúde em vez de um hospital particular. O resultado do exame foi positivo, assim como o atendimento médico recebido.

Parte da população só tem contato com o SUS para a vacinação infantil, ainda assim muitos preferem as clínicas particulares. Para o infectologista e pediatra Renato Kfouri, presidente do Departamento de Imunizações da Sociedade Brasileira de Pediatria, há diferenças entre as vacinas oferecidas na rede pública e na privada: algumas não estão disponíveis no SUS (como a de meningite B), outras estão desatualizadas no sistema público (pneumonia e coqueluche) e outras, restritas a faixas etárias específicas.

— Mesmo quando as vacinas são iguais, como febre amarela, sarampo, catapora, tem gente que não quer ir ao posto e prefere o privado por uma questão de ambiente — afirma Kfouri.

Mas, além da vacina da pólio, a da gotinha, só os imunizantes contra Covid-19 são exclusivos do SUS. Isso foi fundamental para que a cobertura fosse abrangente e igualitária, já que o número de doses disponíveis também é restrito.

Para a médica Lígia Bahia, especialista em Saúde Pública da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), ficou claro para toda a sociedade que, se houver oferta pública boa todos vão querer aderir.

— Aos olhos da população brasileira, ficou evidente que sem o SUS nesta pandemia estaríamos lascados. Na emergência sanitária, o SUS estava ali. Não dá para continuar dizendo que privado é bom e público é ruim. Há privados e privados e públicos e públicos — afirma Bahia, citando a excelência não só na vacinação, mas também na testagem em algumas cidades, como o Rio, e no atendimento aos pacientes.

Por outro lado, a explosão de doentes por todas as classes sociais escancarou as mazelas do sistema privado. Viu-se, subitamente, filas intermináveis e a falta de insumos importantes no combate à infecção nos melhores hospitais do país.

O médico Luis Fernando Paes Leme, diretor do Hospital Municipal Vereador José Storopolli, em São Paulo, presenciou em seu dia a dia a gratidão da população com os colegas.

— Durante toda a minha vida trabalhei no SUS. Sempre lutamos muito para prestar um serviço de excelência, e a pandemia evidenciou o nosso trabalho. Recebemos inúmeros elogios dos pacientes, inclusive de famílias de pessoas que não sobreviveram, mas que reconhecem o esforço das nossas equipes em desempenhar o melhor trabalho possível. Vi muitos profissionais dando tudo de si. As pessoas estão procurando o SUS e o SUS está dando a resposta que elas precisam. Muitas pessoas nunca tinham usado o sistema e agora estão descobrindo — comemora o médico.

A enfermeira Jurema da Silva Herbas Palomo, diretora da coordenação de Enfermagem do Instituto do Coração e São Paulo (InCor) sentiu que a confiança da população nos profissionais foi crescendo enquanto o coronavírus avançava.

— Tivemos um paciente que passou quase seis meses conosco no hospital. Ele estava com um comprometimento grande no pulmão e precisava de um transplante. No entanto, permaneceu lúcido por todo o tempo e sempre fez questão de agradecer à equipe que cuidou dele. A alegria e o reconhecimento dele nos fez muito bem — conta Palomo.

Para o presidente do Instituto Locomotiva, Renato Meirelles, que estuda saúde pública há 20 anos, com a pandemia, a necessidade do SUS para a sobrevivência dos brasileiros se escancarou. E, com isso, a defesa do sistema deixou de ser feita apenas por intelectuais, estudiosos da medicina e classes mais baixas e passou a ser feita pela população como um todo.

— As pessoas viram os sacrifícios dos profissionais da linha de frente para salvar vidas e perceberam que estavam tendo um atendimento de igual para igual com quem tem convênio particular. A necessidade e importância do SUS se escancararam e passou a haver uma defesa contra quem atacava o sistema. A população entendeu que o SUS é do estado, é um patrimônio nacional — afirma Meirelles.

História

O Sistema Único de Saúde foi criado na Constituição de 1988 e, para alguns, é sua principal marca e grande novidade: uma política pública universal. O SUS unia o Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência (Inamps), dirigido a quem tinha carteira assinada, e as redes públicas municipal, estadual, federal e filantrópica.

Além do início promissor, teve imenso destaque em épocas específicas, com ações como a criação dos medicamentos genéricos e a oferta do coquetel contra Aids. Mas, se um dos princípios era fortificar a saúde primária, esbarrou em diversos obstáculos, além do contingenciamento de verbas, como a dificuldade de atrair médicos para determinadas regiões.

— O SUS tem muitas dificuldades: filas intermináveis, dificuldades com exames, diagnósticos tardios, tem muita coisa para se fazer. Avançamos mais no plano simbólico, da valorização do SUS, da compreensão do que é uma política pública, do que de fato no cotidiano. Sairemos da pandemia, no entanto, com um legado positivo e força para incentivar a melhora — diz Ligia Bahia.

Veja também

Maduro diz que González Urrutia lhe pediu 'clemência' para sair da Venezuela
Venezuela

Maduro diz que González Urrutia lhe pediu 'clemência' para sair da Venezuela

'Estamos tentando evitar o fim do mundo': Flávio Dino defende gastos com incêndios
Queimadas

'Estamos tentando evitar o fim do mundo': Flávio Dino defende gastos com incêndios

Newsletter