Xi Jinping ataca Guerra Fria 2.0 e defende multilateralismo em Davos
"Cada país é único e nenhum é superior ao outro. Não há civilização humana sem diversidade, nossas diferenças são tão antigas quanto as sociedade humanas", afirmou o presidente
A humanidade vai sair mais fortalecida da pandemia se trabalhar unida, respeitando diferenças entre países sem preconceitos ideológicos e promovendo o multilateralismo em oposição ao "isolamento arrogante" que leva a uma nova Guerra Fria.
Afinal de contas, só temos um planeta Terra e um futuro em comum.
Historicamente, tais palavras caberiam a um presidente americano, como John Fitzgerald Kennedy no seu famoso discurso de 1963 em Washington. Nesta segunda (25), contudo, elas saíram da boca do presidente da China, Xi Jinping.
Ele falou por vídeo no Fórum Econômico Mundial de Davos (Suíça), que está em modo virtual nesta edição devido à pandemia da Covid-19.
Sua fala foi uma continuação do histórico primeiro discurso que fez no evento, uma espécie de reunião de quem importa na política economia mundiais. Em 2017, Xi contava cinco anos à frente da ditadura comunista e fez uma forte defesa da globalização e do livre comércio, enquanto reforçava seu jugo autocrático.
Era o começo da era de Donald Trump nos Estados Unidos, a potência dominante que se vê ameaçada pela ascensão chinesa. O legado da beligerância do presidente que deixou o cargo na semana passada foi destroçado pro Xi na fala desta segunda.
Sob Trump, os EUA criaram uma Guerra Fria 2.0 com os chineses em campos que vão da tecnologia 5G ao domínio sobre o mar do Sul da China, passando pela autonomia de Hong Kong e disputas comerciais.
"Cada país é único e nenhum é superior ao outro. Não há civilização humana sem diversidade, nossas diferenças são tão antigas quanto as sociedade humanas", afirmou o chinês.
Para ele, "arrogância e ódio são motivo de alarme". "Sanções, isolamento, uma nova Guerra Fria só levaram para o confronto", disse, elencando o menu usual dos EUA e de aliados ocidentais contra seus adversários.
Obviamente Xi não citou os EUA nominalmente, mas sua fala estava direcionada a Joe Biden, o democrata que assumiu a cadeira do republicano Trump na semana passada.
O chinês sabe que Biden não tem exatamente muita margem de manobra para deixar a política de enfrentamento do antecessor em relação à China. O novo secretário de Estado americano, Antony Blinken, disse na semana passada considerar a ditadura asiática a principal rival de seu país.
Xi tocou música para os apologistas da globalização. Afirmou que apenas "jogos de ganha-ganha" farão a humanidade sair da pandemia da Covid-19 e tentou dar um tom otimista –a pandemia surgiu no seu país e foi largamente controlada, apesar de alguns focos recentes do vírus.
Ele traçou quatro prioridades para o mundo sair da crise: coordenação macroeconômica, cooperação sem preconceitos, redução do fosso Norte-Sul na economia e união mundial contra ameaças como a Covid-19.
"O fosso está se perpetuando com a pandemia, é preciso uma governança econômica global", disse Xi. Para ele, não há saída fora do multilateralismo. "Nenhum problema global pode ser resolvido por um só país", afirmou.
Xi sustentou que o G20, grupo das economias mais desenvolvidas do planeta, deve ser reforçado como o principal fórum global, e que a lei internacional sob o mandato da Organização das Nações Unidas precisa ser soberana.
"Sem ela, é a lei da selva, com consequências devastadoras", afirmou o chinês.
Com isso, o chinês se consolida como o principal defensor da globalização e de instrumentos multilaterais de resolução de conflitos do mundo. Não deixa de ser uma óbvia ironia, dado que esse sempre foi o fundamento do Ocidente ante as sociedades totalitárias comunistas da União Soviética e da China.
A diferença, também óbvio, é que Pequim abraçou o capitalismo a partir do fim dos anos 1970, numa transmutação que criou a segunda maior economia do mundo sem abrir mão do regime ditatorial na política.
Aí entra a parte do discurso de Xi acerca do respeito às formas de cada país de se governar. "Nós chegamos a uma sociedade [na China] moderadamente próspera. Somos um país socialista moderno", disse, defendendo políticas inclusivas.
Um observador crítico notaria que o discurso do líder chinês não se aplica exatamente à minoria muçulmana uigur em seu país, que lhe valeu a grave acusação de genocídio por parte de Trump no último dia do mandato do americano.
Ou ainda à dura repressão empregada por Pequim contra os movimentos pró-democracia de Hong Kong, cidadela de um regime híbrido que parece fadada a virar uma grande cidade chinesa como Xangai.
É preciso, disse Xi, "evitar se intrometer nos assuntos de outros países". Recado mais claro a Biden, impossível.
Tal contradição é uma cortesia de nossos tempos, em que um presidente americano passou quatro anos defendendo um isolacionismo virulento. "As relações entre Estados têm de ser reguladas", disse Xi, renegando a "exibição de músculos ou o balançar de grandes punhos".
Para Xi, que em 2019 ganhou o direito de ficar indefinidamente no cargo de secretário-geral do Partido Comunista Chinês e, portanto, à frente do país, a pandemia é uma oportunidade.
"Não podemos rejeitar mudanças. Esta é a maior transformação em um século", disse, relacionando medidas chinesas de cooperação na área de vacinas. A Coronavac ora em aplicação no Brasil foi criada em Pequim, e o país enfrenta problemas para receber insumos para formulação de mais imunizante da China.
Xi pediu reforço a entes como a Organização Mundial da Saúde e a Organização Mundial do Comércio.
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"Não serve a ninguém usar a pandemia para reverter a globalização. A China vai continuar a se abrir e a manter as cadeias globais de suprimento abertas", afirmou, acerca de um problema que atingiu o país no começo da crise sanitária.
Como nenhum discurso politicamente correto e antenado com a atualidade ficaria completo sem referência ao ambiente, Xi prometeu desenvolvimento sustentável e uma economia neutra em carbono na China até 2060. "
"É do interesse de todos. A China fará o trabalho", disse, defendendo maior cooperação Sul-Sul para "erradicar a pobreza". Em seu momento JFK, que há quase 60 anos havia dito que "respiramos o mesmo ar", Xi afirmou: "Só temos uma terra, um futuro compartilhado para a humanidade. Vamos dar as mãos".