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Morre dramaturgo José Celso Martinez Corrêa em São Paulo, aos 86 anos

Dramaturgo havia sido internado após sofrer queimaduras em um incêndio em seu apartamento

Dramaturgo Ze Celso MartinezDramaturgo Ze Celso Martinez - Foto: Divulgação

Certa vez, em entrevista à Sesc TV de São Paulo, o diretor, dramaturgo e encenador José Celso Martinez Corrêa declarou: “Eu não sou de desistir. Eu sou de reexistir”. De fato, Zé não desistiu. E passou a reexistir nesta quinta-feira (6), quando faleceu em decorrência das complicações do trágico acidente da última terça-feira (4). O diretor teve falência dos órgãos. 

O artista, de 86 anos, foi vítima de um incêndio que tomou o quarto do seu apartamento, no bairro Paraíso, em São Paulo. Ele teve 53% do seu corpo comprometido por queimaduras de segundo grau e estava internado na UTI do Hospital das Clínicas, inicialmente entubado e respirando por ventilação mecânica. Na tarde da quarta (5), uma piora no seu estado de saúde, com um quadro de insuficiência renal, o levou a ser submetido à hemodiálise.

Uma corrente de axé se firmou em torno da recuperação do encenador, nome dos mais emblemáticos do teatro brasileiro. Também foram atingidos pelo incêndio – porém, com menos complicações – o marido de José Celso, Marcelo Drummond, o cão do casal, Nagô, e os atores Victor Rosas e Ricardo Bittencourt. O cão foi atendido em uma clínica veterinária e recebeu alta já na terça.

José Celso era o encenador há mais tempo em atividade no Brasil. Desde 1958, o incansável artista vinha realizando, ininterruptamente, seus espetáculos à frente do Teatro Oficina. Aos 86 anos, ele seguia em pleno vigor artístico. O dramaturgo vinha com duas atividades especiais em paralelo: preparando e dirigindo atores e atrizes para levar ao palco a adaptação do livro “A queda do céu”, de Davi Kopenawa e Bruce Albert; e, em colaboração com Beto Eiras, escrevendo o livro “A origem da tragicomédiaorgya no corpo da música: di-ti-sambo”, obra que tece um estudo sobre a linguagem do Teatro Oficina.



Nascido em 30 de março de 1937, em Araraquara (SP), começou a se interessar pelas artes ainda criança, quando usava da inventividade infantil para criar meios cênicos como brincadeiras. Foi empinando uma pipa, por exemplo, que teve a inspiração para escrever sua primeira peça teatral, “Vento forte para um papagaio subir”, de 1958. Apesar de o pai levá-lo ao teatro quando criança, para assistir, entre outros, a
Dercy Gonçalves e Procópio Ferreira, foi por pressão deste e da mãe, que Zé Celso acabou cursando Direito
na USP, indo morar na cidade de São Paulo. Mas foi justamente na faculdade que deu início a um caminho
sem volta para o teatro
. Em 1958, junto aos companheiros do Centro Acadêmico 11 de Agosto – entre os quais, Renato Borghi, Etty Fraser, Fauzi Arap, Ronaldo Daniel e Amir Haddad – fundou o Teatro Oficina, que se profissionalizou a partir de 1961 e vem funcionando até hoje, com sede no bairro do Bixiga, com sua já conhecida estrutura: no meio, um corredor de cerca de 30 metros de extensão como palco, ladeado por arquibancadas.

Em 1984, a companhia passou a se chamar Teatro Oficina Uzyna Uzona e o prédio onde funciona é tombado nos três níveis – municipal, estadual e federal – devido à sua importância para as artes cênicas no Brasil.

Trajetória
José Celso Martinez Correa era considerado um dos principais encenadores do País, desde os anos 1960. São quase 40 espetáculos teatrais com sua mão – seja como autor, diretor, ator, ou em adaptações. Zé Celso foi agraciado com mais de 20 dos principais prêmios teatrais do Brasil.

Da mesma geração de nomes do quilate de Antunes Filho e Augusto Boal, Martinez imprimiu uma identidade muito própria à linguagem teatral que desenvolveu desde o início do Oficina. Um verdadeiro
“xamã”, Zé Celso foi dionisíaco, antropofágico, sincrético, tropicalista. Mãe Stella de Oxóssi o chamou
de “Exú Senhor das Artes Cênicas”. Sua dramaturgia começou focando no teatro realista de Stanislaviski,
mas, com o tempo, foi trilhando caminhos originais, liquidificando em sua mise-en-scène carnaval, as tradições dos povos negros e originários, a cultura pop, e, acima de tudo, a quebra de tabus da
sexualidade – o que lhe rendeu, desde sempre, a pecha de “polêmico”. Quando da passagem de sua longa montagem de “Os sertões” – baseada no livro de Euclides da Cunha – por Berlim, em 2005, a imprensa
alemã classificou a peça como “teatro pornô”. O seu teatro, como ele mesmo definia, era “orgiástico”
ou uma “pulsão dionisíaca”.

Evocava a quebra de barreiras e normas sociais e morais, com a utilização do corpo como experiência estética e política, inclusive, muitas vezes, trazendo o público para dentro do espetáculo – é famosa a ocasião em que o cantor e compositor Caetano Veloso, em 1996, em apresentação de “Bacantes”, no Rio de Janeiro, foi arrastado para dentro da cena e despido pelas atrizes, que o deixaram completamente nu (a música “Vamos comer Caetano”, de Adriana Calcanhotto, em parte, é inspirada nessa passagem).

Por sinal, Caetano Veloso atribui ao espetáculo “O rei da vela”, baseado na obra do modernista Oswald de Andrade e encenado pelo Oficina, em 1967, um dos gatilhos a detonar o Tropicalismo da sua mente para o mundo. A peça alavancou o nome do Oficina a um novo patamar, tornando-se sucesso internacional, até. O espetáculo viria a ser reapresentada recentemente, em 2021, com o ator Renato Borghi, que esteve na primeira montagem.

Mas, antes, em 1963, ainda nos primeiros passos do Oficina, foi concebida a montagem de “Pequenos burgueses”, que fazia um paralelo entre a Rússia pré-Revolução de 1917 e o Brasil pré-golpe militar. Em abril de 1964, o espetáculo foi censurado pelo regime, mas acabou rendendo ao dramaturgo uma série de premiações, o que fez com que voltasse a ser encenado a partir do mês seguinte. Era o início do Oficina, em sua fase realista, com um José Celso claramente influenciado pelo método de interpretação (“ação”) do teatrólogo, diretor e ator russo Constantin Stanislavski.

Outra passagem que vale destaque foi a montagem que fez de “Roda viva”, de 1967/1968, escrita e também com trilha sonora de Chico Buarque. Em apresentação no Teatro Ruth Escobar, em São Paulo, o Comando de Caça aos Comunistas (CCC), invadiu a apresentação, espancando os artistas – Marília Pêra, André Valli e Rodrigo Santiago – e destruindo o cenário.

Depois de uma série de problemas com o regime militar, Zé Celso foi preso, em 1974, torturado e destinado ao exílio, em Portugal. Durante esse período, gravou o documentário “O parto”, sobre a Revolução dos Cravos, e “Vinte e cinco”, sobre a independência de Moçambique, ambos em 1975. O dramaturgo voltou ao Brasil em 1979.

Entre as principais obras que marcaram a trajetória do dramaturgo, estão as montagens de “Galileu Galilei”,
“As três irmãs”, “Hamlet”, “Bacantes”, “Esperando Godot” e “Os Sertões” (que foi dividido em cinco
espetáculos, as cinco partes do livro, dado o tamanho da adaptação, com peças durando em torno de quatro
a cinco horas cada). Zé Celso também participou de produções em cinema, televisão e videoclipes.

Além disso, vinha sendo, nos últimos anos, uma das vozes mais ativas contra os retrocessos nas áreas cultural, ambiental e na defesa dos direitos humanos, em especial dos povos originários, se somando,
recentemente, ao coro contra a aprovação da PL do Marco Temporal.

Zé CelsoDramaturgo Zé Celso (Foto: Reprodução/Instagram)

Chamas marcaram a vida do artista em 1966
Um outro incêndio fez parte da trajetória de José Celso. Era 31 de maio de 1966 quando, segundo investigação da época, um curto-circuito no teto do Teatro Oficina deu origem às chamas que se espalharam pelo forro. Fagulhas também caíram sobre as poltronas do espaço. Com isso, o fogo consumiu e destruiu tudo. José Celso, por sua vez, acredita que o incêndio foi criminoso e provocado pelos militares.

Dois espetáculos foram apresentados para levantar fundos com o intuito de reconstruir o Oficina. Um musical dirigido pelo comediante Ary Toledo; e um humorístico, por Jô Soares. O prédio foi reconstruído e reinaugurado em setembro de 1967, quando o Oficina voltou à cena com “O rei da Vela”.

Contenda com Silvio Santos
O prédio do Oficina é pivô de uma polêmica que já dura 43 anos. Em 1980, o Grupo Silvio Santos comprou um terreno em volta da sede do Oficina e pretendia, à época, construir um edifício com quase cem metros de altura, na área. Zé Celso, então, entrou na Justiça para impedir a intervenção, o que prejudicaria a sede teatral.

O imbróglio segue ao longo das décadas sem uma solução. Uma das questões é que tanto essa como outras edificações pretendidas pelo Grupo SS prejudicariam a visão de uma das janelas laterais do Oficina, com vistas para a cidade de São Paulo. Em 2017, Silvio Santos e Zé Celso se reuniram pessoalmente, com mediação dos então prefeito de São Paulo, João Dória, e senador Eduardo Suplicy, o que rendeu muita mídia, mas, nenhuma definição. A proposta de Zé era construir um parque no local.

Casamento
Em 6 de junho deste ano, Martinez se casou com o ator Marcelo Drummond, 60 anos, com quem já mantinha um relacionamento desde 1986. A cerimônia de oficialização da união – chamada pelo dramaturgo de “culto ecumênico artístico” – foi realizada no Oficina, com a presença de amigos e familiares, movimentando a cena teatral local e brasileira.

Entre as presenças, Fernanda Montenegro e a filha Fernanda Torres, o ator Alexandre Borges, a atriz Leona Cavalli, o médico Dráuzio Varella, as cantoras Daniela Mercury e Marina Lima, entre outras figuras ilustres das artes brasileiras, além da bateria da escola de samba paulistana Vai-Vai.
 

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