Indulto concedido por Bolsonaro a Daniel Silveira não tem precedentes desde a Constituição
Condenação deve levantar novas discussões no Supremo Tribunal Federal sobre punições aplicadas ao deputado
O decreto do indulto da graça concedido apenas para o deputado Daniel Silveira e assinado nesta quinta-feira pelo presidente Jair Bolsonaro não encontra paralelo desde a promulgação da Constituição de 1988. A concessão de graça, ou indulto individual, para apenas uma pessoa é inédito, de acordo com um levantamento feito pelo GLOBO e por especialistas no tema.
Entenda: o que é indulto da graça, concedido por Bolsonaro ao deputado Daniel Silveira
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Especialistas afirmam, ainda, que o decreto pode ser interpretado como desvio de finalidade, ao ferir os princípios da impessoalidade e da moralidade, o tornando inconstitucional. Daniel Silveira foi condenado a 8 anos e 9 meses de prisão, além da perda do mandato e dos direitos políticos, por atos antidemocráticos e ameaças ao STF e seus ministros.
O advogado criminalista e professor Rodrigo de Oliveira Ribeiro publicou um estudo com o histórico da aplicação do indulto por presidentes. Segundo ele, não há registro em sua pesquisa de decretos de concessão de graça por presidentes desde a redemocratização.
Em consulta a dados do Departamento Penitenciário Nacional (Depen), que catalogam todas as publicações do tipo, o GLOBO também não localizou nenhuma decisão do tipo. Na história do Brasil, existe pelo menos um registro, de 1945, quando o então presidente José Linhares concedeu perdão a dois civis italianos após a Segunda Guerra Mundial.
— Mas desde a democracia, desde a Constituição de 1988 não me recordo de nenhum decreto de graça que tenha sido dado — afirma Ribeiro.
Os pedidos de perdão ou graça também podem ser concedidos em processos judiciais após pedidos de condenados ou de réus. Isso pode acontecer, por exemplo, no caso de presos em estágio terminal.
Por outro lado, historicamente os presidentes publicam durante o Natal decretos de indulto coletivos, beneficiando condenados por diversos crimes. Tradicionalmente, esse tipo de publicação é publicada durante o Natal, o que o tornou conhecido como "indulto natalino".
O jurista Gustavo Binenbojm, professor titular da Faculdade de Direito da Uerj, diz que o indulto concedido por Bolsonaro, de fato, é uma competência privativa do presidente da República que só não pode ser exercida em caso de crimes muito graves, o que não foi o caso.
Ele afirma, porém, que o STF terá que analisar se o decreto fere os princípio da impessoalidade e moralidade, previstos na Constituição. Esses princípios da administração pública direta e indireta precisam ser obedecidos por qualquer dos Poderes da União, estados e municípios.
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— O que chama atenção na situação concreta é tratar-se de um agente político aliado do presidente. Podemos imaginar que o STF pode controlar decreto, no sentido de considerar que há desvio de finalidade. Pode haver um controle de legalidade do ponto de vista dos princípios constitucionais da administração pública, como impessoalidade e moralidade da administração pública — diz.
Binenbojm compara a situação com a condenação de aliados da então presidente Dilma Rousseff no caso do mensalão:
— Basta imaginar o que os cidadãos, o próprio presidente Bolsonaro diria, se a ex-presidente Dilma Rousseff tivesse concedido o mesmo indulto aos seus aliados condenados no mensalão?
O indulto da graça extingue a punibilidade, mas não deve alcançar os demais efeitos da condenação criminal, como a cassação do mandato, a inelegibilidade e a perda dos direitos políticos de Daniel Silveira. Isso ocorreria por força da Súmula 631 do Superior Tribunal de Justiça, que diz: "O indulto extingue os efeitos primários da condenação - pretensão executória -, mas não atinge os efeitos secundários, penais ou extrapenais”.
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A princípio, ele perderá o direito a concorrer em eleições quando sua sentença transitar em julgado, isto é, quando os recursos forem esgotados. Contudo, o deputado também poderia ser incluído na Lei da Ficha Limpa, que prevê que a condenação por órgãos colegiados, como o Plenário do Supremo, já torna um eventual candidato inelegível.
Filipe Coutinho da Silveira, advogado criminalista sócio do Silveira Athias Advogados, afirma que o decreto de Bolsonaro não afasta os demais efeitos da condenação de Silveira:
— Há o direito de se fazer o decreto, mas se mantém os efeitos demais da condenação, como a perda da primariedade e a perda dos direitos políticos. É mais um capítulo que reflete toda essa crise institucional.
O advogado criminalista Pierpaolo Cruz Bottini afirma que a extinção da punibilidade trazida pelo decreto irá gerar discussão sobre a cassação do mandato do deputado.
— Se você extinguir a punibilidade, vai ter uma discussão a respeito da cassação. Como a cassação diz que vai ser submetida a plenário, isso vai fazer com que a cassação não seja mais automática. O que foi feita é uma proposital confusão jurídica para se ganhar fôlego — disse.
Rodrigo de Oliveira Ribeiro afirma que o decreto de Bolsonaro levantará alguns pontos polêmicos no Supremo Tribunal Federal. O principal deles é em relação ao tempo de sua publicação: após a condenação, mas antes do trânsito em julgado.
— Algumas pessoas podem discordar porque argumentam que não há possibilidade dele dar esse indulto porque a pena não foi dimensionada de forma definitiva. Ele está perdoando uma pena que nem é um título executável. Está perdoando uma pena precária, que nem se formou. Ainda existe a possibilidade de embargos, por exemplo — afirmou.
Ribeiro, entretanto, lembra que, do ponto de vista histórico, esse poder irrestrito concedido ao presidente na questão dos indultos ou da graça tem como objetivo a possibilidade de ser aplicado em momentos de exceção, para evitar uma convulsão social, por exemplo.
Portanto, não poderia estar submetido a esse tipo de limite. Nos Estados Unidos, uma das origens do perdão presidencial, o presidente Gerald Ford concedeu perdão ao ex-presidente Richard Nixon antes mesmo da apresentação da denúncia.
O advogado ressalta que discorda da aplicação do perdão a Daniel Silveira mas destaca que é possível que, no futuro, esse tipo de decreto poderia ser aplicado em outro contexto.
— Hoje, a gente poderia reclamar que o perdão está sendo dado para um deputado desse jaez mas se a gente questionar isso ou impedir, talvez estejamos criando um precedente ruim, porque no futuro poderemos ter outro governo, outra situação e ter outro deputado. Não podemos ser casuístas e temos que entender alguns fundamentos maiores que explicam por que essas regras são assim — afirmou.