Caso Marielle: delação de Queiroz traz à tona lacunas na investigação do crime ao longo de 5 anos
Imagens de câmeras de segurança que captassem o momento da fuga após a execução, por exemplo, não foram preservadas
Ao mesmo tempo em que a delação premiada do ex-PM Élcio de Queiroz à Polícia Federal ajudou a esclarecer pontos até então obscuros da dinâmica dos assassinatos da vereadora Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes, ela expõe lacunas da investigação conduzida pela Polícia Civil e pelo Ministério Público do Rio (MPRJ). A rota de fuga dos assassinos, as atividades criminosas do ex-bombeiro Maxwell Simões Corrêa, o Suel, assim como o responsável pelo desmanche do veículo não haviam sido elucidados pela Delegacia de Homicídios (DH) nos cinco anos em que esteve à frente do inquérito.
Essas informações vieram à tona na delação de Queiroz, que a Polícia Civil fluminense destaca, em nota, ter sido feita por um dos investigados presos pela corporação. Nos dias seguintes ao crime, agentes da DH não coletaram imagens de câmeras de segurança de prédios no entorno do local do duplo homicídio. A especializada também não aprofundou a investigação sobre Suel, embora soubesse de seu suposto envolvimento com uma milícia em Rocha Miranda. E, na análise das ligações feitas por Ronnie Lessa, acusado de ser o autor dos disparos, nos dias posteriores às execuções, não conseguiu identificar o responsável pelo desaparecimento do Cobalt usado no ataque.
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Imagens não preservadas
Como no inquérito da DH não havia imagens que mostrassem a fuga dos assassinos, ao assumirem o caso, os investigadores da PF, então, entraram em contato, em março passado, com o Centro de Convenções Sulamérica, a poucos metros do local das mortes, para saber se alguma gravação que esclarecesse o caminho dos matadores havia ficado armazenada. Antes, uma testemunha havia afirmado à Polícia Civil que o carro dos assassinos tinha passado em frente ao local. Agora, à PF, um representante do empreendimento alegou, por e-mail, que não tinha mais as imagens e que não houve um pedido para que elas fossem preservadas.
“O vigilante local recebeu um policial civil na época, o mesmo portava somente sua documentação funcional e veio em uma viatura caracterizada da Civil. Não nos foi passada nenhuma documentação formal de pedido de gravação. O policial seguiu até a sala de monitoramento e pediu para fotografar com seu próprio celular um de nossos monitores”, respondeu o representante do Sulamérica.
Através da delação de Queiroz, hoje se sabe que o carro dos assassinos passou na frente do Centro de Convenções e seguiu até a Avenida Brasil. No inquérito encaminhado pela Civil à PF não há outras solicitações de imagens a estabelecimentos comerciais ou residências nesse trajeto.
A busca sistemática por câmeras, porém, foi fundamental para a DH solucionar um homicídio com modus operandi bastante semelhante em 2020: o do bicheiro Fernando Iggnácio, num heliporto no Recreio dos Bandeirantes. Imagens flagraram os atiradores entrando num carro numa rua dos fundos. Nos dias posteriores, quase todo o efetivo da DH foi mobilizado para refazer o percurso dos criminosos à procura de imagens, uma vez que a capacidade de armazenamento de câmeras de segurança geralmente não passa de poucos dias.
Essa estratégia não foi usada no caso Marielle. À PF, Queiroz revelou que os executores desceram do Cobalt na Rua Intendente Cunha Menezes, no Méier, uma rua residencial repleta de câmeras, onde a mãe de Lessa morava.
Indícios de ilegalidades
Outra brecha diz respeito à atuação de Suel, ex-bombeiro amigo de Lessa que, segundo Queiroz, participou de campanas para vigiar a vítima nos meses que antecederam o crime. Suel foi mencionado pela primeira vez no inquérito da DH num relatório ainda de novembro de 2018. O documento apontou, com base em “dados extraídos de um colaborador da Gardênia Azul”, que Suel seria “responsável pelas atividades da milícia em Rocha Miranda”. Na época, já havia indícios que corroboravam a suspeita: Suel era sócio de empresas de venda de sinal de internet e de cestas básicas na região — atividades largamente exploradas por milícias no Rio.
Após o relatório, não foram aprofundadas as investigações sobre a participação de Suel na milícia de Rocha Miranda e supostos crimes cometidos pela quadrilha. Ele nunca foi indiciado por integrar o grupo paramilitar.
Cinco anos depois, a partir da delação de Queiroz, a PF retomou a apuração sobre a atuação de Suel na milícia. Em seu depoimento, o ex-PM não só contou que o ex-bombeiro tem o monopólio do gatonet na região, como revelou que Lessa era seu sócio no negócio. “O gatonet era com o Maxwell na área de Rocha Miranda. No caso do Ronnie, era mais para dentro da comunidade do Jorge Turco (no bairro do Colégio)”, disse Queiroz. Uma denúncia de 2019, citada no relatório da PF após a delação, descreve como Suel garante a exclusividade do negócio: “Maxwell está impedindo moradores de instalarem seus serviços de internet (...) Os moradores têm fios de internet cortados e são ameaçados”.
Ligações entre suspeitos
O sumiço do Cobalt usado no crime é mais uma lacuna. A DH não conseguiu precisar o local, a data e os envolvidos no desmanche do veículo. Mas os históricos de chamadas de Lessa e Suel, obtidos pela DH em 2018, revelam que, nos dias após o 14 de março daquele ano, ambos fizeram ligações para Edilson Barbosa dos Santos, o Orelha, ex-proprietário de um ferro-velho apontado por Queiroz como responsável por destruir o Cobalt. No dia seguinte ao crime, entre 15h31 e 19h21, Suel ligou sete vezes para Orelha. Lessa ligou para Orelha às 8h50 do dia 16, mesmo horário que Queiroz aponta como o da entrega do veículo para desmanche. De posse dos históricos de chamadas, a DH não procurou identificar para quem os dois suspeitos ligaram.
Questionada, além de ressaltar que Queiroz foi preso pela corporação, a Secretaria de Polícia Civil (Sepol) alegou que “a delação de um dos envolvidos ratificou o acerto investigativo e acrescentou novos e relevantes dados da execução, representando mais um importante passo para se chegar ao mandante e à motivação do crime”. A secretaria disse ainda que “ as investigações da Polícia Civil são acompanhadas pelo Ministério Público, que atua em conjunto com a autoridade policial e requisita diligências consideradas imprescindíveis para formação de seu convencimento e formalização de acusação perante a Justiça”.
Já o MPRJ respondeu que os questionamentos do Globo deveriam ser direcionados à Civil e acrescentou que as investigações, no âmbito do Grupo de Atuação Especializada de Combate ao Crime Organizado (Gaeco), tramitam sob sigilo.
Reviravoltas e avanços
Outro personagem trazido à cena na delação de Queiroz e que contatou Lessa e Suel antes e depois do crime foi o PM reformado Edimilson de Oliveira da Silva, o Macalé, atualmente apontado como intermediário entre o mandante da execução e Ronie Lessa.
Desde março de 2018, cinco delegados da Polícia Civil estiveram à frente das investigações das mortes de Marielle e Anderson. A Polícia Federal entrou nas investigações este ano, após o presidente Lula oferecer ajuda ao governo do Rio. Enquanto que o MPRJ sempre atuou no caso, com a formação de uma força-tarefa dedicada à apuração das circunstâncias dos assassinatos.
O início das investigações foi conturbado. Na semana do crime, o comando da DH da Capital foi trocado. Depois, depoimentos falseados levaram a Polícia Civil a seguir a linha de que o miliciano Orlando de Oliveira de Araújo, o Orlando da Curicica, seria o autor do crime, e o ex-vereador Marcello Siciliano, o mandante. A apuração da PF, que entrou pontualmente no caso naquela época, afastou de vez essa possibilidade.
“Restou demonstrada pela investigação que a fantasiosa narrativa criada e levada a efeito pelos denunciados (que prestaram as informações falsas), com a participação desastrosa de três delegados de Polícia Federal, nada mais foi que ‘uma ardilosa mentira levada até os encarregados daquele trabalho’”, aponta o recente relatório da PF em que se apresenta a delação de Élcio de Queiroz.
Com a correção dos rumos, a Polícia Civil e o Gaeco passaram a mirar em Ronnie Lessa como atirador e Élcio de Queiroz, o motorista do Cobalt usado na emboscada. Foi um telefonema anônimo para a DH da Capital que trouxe a informação de que o autor do crime seria Lessa e, a partir daí, o ex-sargento da PM passou a ser o alvo.
Entre as descobertas que se seguiram, investigadores e promotoras do MPRJ conseguiram a quebra do sigilo de dados telefônicos e telemáticos dos celulares e computadores de Lessa e Élcio. Uma das revelações foi que os suspeitos fizeram buscas em nome de Marielle antes do crime. Numa segunda etapa, depois da prisão de Lessa e Élcio, em março de 2019, o objetivo passou a ser o de descobrir quem era o mandante. Mas as investigações pouco avançaram entre 2019 e 2023, até que, este ano, ocorresse a guinada, com a consequente delação de Queiroz.