Do golpe ao PAC: entenda a estratégia para pacificar militares sob Lula um ano após o 8/1
Série de encontros articulados pelo ministro da Defesa ajudaram a quebrar clima de desconfiança entre o presidente e os comandantes das Forças Armadas
Prestes a completar um ano no cargo, José Múcio Monteiro orientou a equipe do Ministério da Defesa a manter um porta-retrato sempre próximo à sua mesa de trabalho, na sede da pasta.
Na foto estão os três comandantes das Forças Armadas prestando continência para o presidente Luiz Inácio Lula da Silva. A imagem, feita em 19 de abril, durante a solenidade que comemora o Dia do Exército, virou um troféu para o ministro.
O momento em que a foto foi tirada é considerado o começo de um ponto de virada na tensa relação entre Lula e os militares. Foi a primeira vez em que o petista foi até o Quartel-General do Exército, em Brasília, após um acampamento bolsonarista em frente ao local servir de epicentro para os atos golpistas de 8 de janeiro.
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Recebido com honras e apresentado às tropas, Lula ouviu do comandante do Exército, Tomás Miguel de Paiva, que a instituição é “apolítica, apartidária e imparcial” além da promessa de respeito “às instituições e Constituição”.
A partir de então, os encontros do presidente com os comandantes das Forças passaram a ser frequentes. De solenidades, almoços a visitas a bases militares, as agendas organizadas por Múcio tinham como pauta oficial apresentar a Lula os projetos estratégicos de cada instituição. Na prática, o ministro pretendia diluir o clima de desconfiança mútua.
A mais informal dessas conversas ocorreu em volta da piscina do Palácio da Alvorada, num sábado de agosto, no momento em que a Polícia Federal avançava nas investigações sobre suposto envolvimento de militares em um esquema de venda de presentes entregues ao Estado brasileiro no governo anterior. Lula usava uma jaqueta do Corinthians, seu time do coração, enquanto os comandantes estavam sem farda. A conversa foi regada a whisky e bolinho de bacalhau.
No seu principal gesto aos militares, Lula incluiu os projetos estratégicos das Forças Armadas em um dos eixos do novo Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), em que promete investir R$ 52,8 bilhões.
Mas a reconstrução da relação não passou apenas pela promessa de dinheiro. Diante do avanço de investigações que miram na participação de integrantes da caserna em supostas tramas golpistas, Múcio adotou uma estratégia de contenção de danos.
Durante a CPI do 8 Janeiro no Congresso, por exemplo, o ministro fez um papel duplo. De um lado, defendia punição a todos militares que tivessem participação em episódios golpistas. Do outro, agia para evitar que as investidas do colegiado e da Polícia Federal promovessem uma devassa na imagem das Forças Armadas.
Ao longo desse período, Múcio tentou transitar entre duas vias: estabelecer uma relação em que passava a ideia de proteção do governo junto aos militares, enquanto as Forças entendiam que era o ministro quem os protegia do governo.
Em uma dessas frentes, agiu para que o PT não conseguisse avançar no Congresso com uma proposta que altera o artigo 142 da Constituição. O trecho costuma ser avocado por aliados de Jair Bolsonaro para defender a atuação das Forças Armadas como poder moderador, interpretação rechaçada pelo Supremo Tribunal Federal (STF).
Também postergou o envio de um parecer necessário para o governo reinstalar a Comissão de Mortos e Desaparecidos Políticos, grupo incômodo às Forças Armadas por atuar na identificação de vítimas da ditadura militar.
A atuação do ministro levou parte da militância petista a defender sua saída, diante de uma avaliação que ele agia para anistiar militares. A tensão escalou após os ataques de 8 janeiro — dois dias antes, em reunião ministerial, Mucio afirmou que os acampamentos em frente aos quartéis estavam perdendo força e que não representavam riscos.
Doze dias depois dos atos golpistas, demitiu o recém-empossado comandante do Exército, general Júlio Cesar Arruda, que insistia em manter a nomeação do tenente-coronel Mauro Cid, ex-ajudante de ordens de Bolsonaro, no Batalhão de Ações e Comandos de Goiânia, uma unidade de Operações Especiais da Força. A justificativa dada internamente foi a quebra de confiança entre os dois. Entre ministros palacianos, a chegada de Tomás Paiva é vista como crucial para Mucio ter se mantido no cargo apesar dos desgastes.
Familiares de Múcio definem o período de janeiro e março, logo após os atos golpistas, como os três piores meses que ele já viveu. O ministro descreve o período como o momento em que “todo mundo desconfiava de todo mundo”.
Num gesto que simboliza uma tentativa de despolitizar as Forças, o ministro fechou o ano com a aprovação da PEC dos Militares na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado. O texto proíbe que militares na ativa se candidatem em eleições e impede que retornem aos quartéis após as campanhas.
Múcio atuou ativamente nessa articulação, visitou todas as Forças, convenceu comandantes e oficiais da importância do projeto e depois foi ao Congresso para fazer a ponte com a oposição. Quando o senador Ciro Nogueira (PP-PI) pediu vista ao projeto, por exemplo, ligou para ele para saber quais eram as dúvidas. Nogueira alegou que apenas queria mais tempo para ler o texto e votou a favor da PEC.
No papel duplo que tem exercido, o ministro passou a também articular a aprovação de uma outra PEC, desta vez uma favorável aos militares. A proposta prevê o aumento gradual de 1,2% para 2% do PIB o valor anual destinado pelo governo às Forças Armadas.
O texto apresentado pelo senador Carlos Portinho (PL-RJ) inicialmente preocupou Lula e articuladores políticos do governo, que temiam que a oposição ficasse com o mérito de uma eventual aprovação. Foi Múcio que convenceu o Planalto do contrário. Em conversas com o senador, o ministro articulou para que o texto apresentado por Portinho atendesse ao desejo do governo. Após as costuras, a orientação do governo é para que a base apoie a PEC de Portinho.
Aprovar as duas PECs são dois principais objetivos de Múcio para 2024, ainda que, ao ocupar um dos postos mais sensíveis da Esplanada, sua permanência no cargo seja incerta.
Já entre integrantes da cúpula do Exército, a avaliação é que a diminuição da tensão entre militares e Planalto tem sido gradual e ainda está em curso, em um processo contínuo a medida em que foi de dissipando a ideia de que a democracia corria riscos. Ao longo do ano, Tomás Paiva se encarregou pessoalmente de diminuir a temperatura na caserna. Visitou todos os comandos militares, em viagens que foram vistas como uma tentativa de buscar a pacificação dos quartéis.
No QG do Exército a presença de Lula em eventos militares como um aceno de prestígio. Antes do recesso de fim de ano, o presidente se reuniu com o Alto Comando das Três Forças no Clube Aeronáutica em uma confraternização de fim de ano. Ao discursar no evento, Múcio fez um balanço do ano, destacando os "muitos obstáculos e dificuldades" enfrentados.