Entenda a polêmica arqueológica que acabou levando ao afastamento da presidente do Iphan
Ao desencavar caso de interferência no instituto, em prol de interesses de amigo dono das lojas Havan, Jair Bolsonaro pôs novamente na berlinda o nome de Larissa Rodrigues Peixoto Dutra
Larissa Rodrigues Peixoto Dutra foi nomeada presidente do Iphan em maio do ano passado, após cinco meses em que o Instituto ficou sem titular. Ela era servidora do Ministério do Turismo, ao qual o Instituto está subordinado, através da Secretaria Especial da Cultura. Antes, Larissa ocupava a direção do Departamento de Desenvolvimento Produtivo da Secretaria Nacional de Integração Interinstitucional, subordinada ao Turismo.
Desde a exoneração de Kátia Bogéa pelo então secretário da Cultura, Roberto Alvim, o Iphan ficou com a presidência vaga. A arquiteta Luciana Rocha Feres chegou a ser nomeada para o cargo, mas a portaria foi cancelada no dia seguinte. Kátia Bogéa ocupou a presidência do Insituto entre 2016 e 2019. Desde dezembro de 2019, a presidência foi ocupada interinamente por Robson Antônio de Almeida. Após a indicação de Luciana, o nome do arquiteto mineiro Flávio de Paula Moura foi cogitado para o cargo, mas seu nome nunca foi confirmado no Diário Oficial. Na época, especialistas em patrimônio fizeram ressalvas à possível nomeação pela falta de experiência na área.
Em uma postagem de uma rede social da pasta, Larissa aparecia como servidora do Ministério há 11 anos. Segundo informações do órgão, ela atuou na formatação do Programa Revive no Brasil, uma parceria com o Ministério da Economia de Portugal para a recuperação de patrimônios históricos e culturais e seu aproveitamento para fins turísticos, assinada no mês de março.
Um dia após a nomeação de Larissa Rodrigues Peixoto Dutra, o Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Brasil (CAU/BR) e os Conselhos de Arquitetura e Urbanismo dos Estados e do Distrito Federal (CAU/UF) divulgaram nota de repúdio "às seguidas nomeações de pessoas sem qualificação técnica adequada para cargos de confiança do Iphan."
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O caso ficou mais sério quando, no fim do mês, o ministro Celso de Mello, do Supremo Tribunal Federal (STF), divulgou o vídeo da reunião ministerial do dia 22 de abril, em que o presidente Jair Bolsonaro atacava a atuação do Iphan, o que suscitou uma ação popular na Justiça de São Paulo pedindo a anulação da nomeação de Larissa Peixoto. Segundo a ação, haveria indícios de desvio de finalidade na troca da chefia do Iphan.
O processo protocolado pelos advogados Flavio de Leão Bastos Pereira, Flavio Grossi e Patrícia Borba de Souza, pedia uma liminar com caráter de urgência para suspender a nomeação de Larissa Peixoto, devido ao "iminente risco de dano irreversível ao patrimônio histórico, estético, artístico e, portanto, cultural, nacional". Além da suspensão, pedia que o ato fosse anulado.
No vídeo, o presidente Jair Bolsonaro dizia que "o Iphan para qualquer obra do Brasil, como para a do Luciano Hang", citando uma obra do empresário dono da Havan — de quem é amigo pessoal. A construção no Rio Grande do Sul foi suspensa por ordem do órgão, que achou objetos de pesquisa arqueológica no local.
A nomeação de Larissa Peixoto ao cargo chegou a ser anulada depois de alguns dias no cargo, por ação popular movida pelo deputado federal licenciado Marcelo Calero (Cidadania-RJ), sob a alegação de que ela não preenchia os requisitos para o cargo. Calero foi ministro da Cultura durante a gestão de Michel Temer.
— Quando substituíram a Kátia Bogéa, o Bolsonaro já tinha dito que aquilo tinha uma conotação mais política do que técnica, no sentido de que a diretoria do Iphan não estava atendendo aos seus pleitos. E a Larissa, de maneira muito clara não tinha qualificação técnica para assumir a presidência do Iphan, um instituto com atribuições muito específicas, normalmente exercida por historiadores, arqueólologos e museólogos, uma gama mais restrita de profissionais — conta Marcelo Calero.
Larissa é formada em Turismo e Hotelaria e cursava pós-graduação em “MBA Executivo em gestão estratégica de marketing, planejamento e inteligência competitiva”. Para assumir a presidência do Iphan, ela deveria ter graduação em história, arqueologia, museologia, antropologia, artes ou outra área relacionada ao tombamento, conservação, enriquecimento e conhecimento do patrimônio histórico e artístico nacional. A liminar que impedia a nomeação, no entanto, acabou cassada e ela assumiu o cargo.
Numa nova revilravolta esta semana, Larissa foi afastada da presidência do Iphan por decisão da Justiça Federal, atendendo a novo pedido do Ministério Público Federal e do ex-ministro da Cultura Marcelo Calero,. E tudo por causa de uma declaração de Jair Bolsonaro, na quarta-feira, que desencavou o caso do Havan. Em participação no Fórum Moderniza Brasil - Ambiente de Negócios, realizado na sede da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), o presidente "ripou" servidores do órgão após embargo da obra de Luciano Hang.
“Tomei conhecimento que uma pessoa conhecida, o Luciano Hang, estava fazendo mais uma loja, e apareceu um pedaço de azulejo nas escavações. Chegou o Iphan e interditou a obra”, disse Bolsonaro na quarta-feira. “Liguei para o ministro da pasta e [perguntei]: que trem é esse? Porque não sou inteligente como meus ministros. O que é Iphan, com ph? Explicaram para mim, tomei conhecimento, ripei todo mundo do Iphan. Botei outro cara lá”, completou Bolsonaro.
As declarações suscitaram a edição, na quinta, de uma notícia-crime contra o presidente no STF, apresentada pelo senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP), pedindo que Bolsonaro fosse investigado por prevaricação e advocacia administrativa.
— Quando ingressamos com a ação popular, em 2020, nós não falamos apenas da qualificação técnica, mas tínhamos alertado também que a nomeção da Larissa pudesse representar um desvio de finalidade — observa Marcelo Calero. — Ou seja, que ela poderia ter sido nomeada com o simples objetivo de atender a interesses particulares de pessoas próximas ao Bolsonaro. Mas na época a justiça não se debruçou sobre esse argumento. Agora é como se o Ministério Público falasse: "Olha, sabe aquilo lá que você levantou lá atrás? Agora ficou provado."
O empreendimento no centro da polêmica é uma loja da Havan na cidade de Rio Grande, no Rio Grande do Sul, inaugurada em julho deste ano, e cujas obras se iniciaram em março de 2019. Segundo reportagem do UOL, 20 achados arqueológicos foram encontrados no terreno, entre eles estão cerâmicas pré-coloniais de dois tipos diferentes - uma delas de indígenas tupi-guaranis - e pedaços de louças fabricadas no final do século 19. Ainda segundo a reportagem, o material está guardado na Furg (Universidade Federal do Rio Grande).
Os primeiros vestígios arqueológicos no terreno foram encontrados em 4 de julho de 2019 pela Archaeos Consultoria em Arqueologia, contratada pela Havan para fazer a análise da área. A empresa recomendou ao Iphan a realização de "prospecção intensiva no local e após a continuidade do monitoramento das obras", segundo projeto encaminhado ao instituto. Por conta disso, o instituto recomendou o bloqueio de parte da obra. Isso levou Luciano Hang até a inaugurar um "atrasômetro" no terreno, devido à demora para obter o alvará do estabelecimento.
Em sua conta no Twitter, o empresário escreveu que em 2020 fez uma transmissão ao vivo pelas redes sociais para falar sobre o “absurdo” de o Iphan ter paralisado a obra da loja da Havan "por mais de 40 dias". Segundo Hang, a medida foi tomada porque técnicos do instituto encontraram um artefato no terreno que pensavam ter valor histórico. De acordo com o empresário, porém, "não passava de um pedaço de cerâmica comum”.
Hang ainda afirmou que a obra só não ficou paralisada por mais tempo porque ele colocou a “boca no trombone”. “Bolsonaro usou o meu exemplo para expor algo que acontece com qualquer empreendedor brasileiro todos os dias. A fala do presidente reforça seu compromisso em buscar um país que cresça por meio da livre iniciativa, sem burocracia. Não adianta termos órgãos públicos que não deixam o povo trabalhar”, escreveu.