Entenda os possíveis crimes do escândalo das joias que seriam para Michelle Bolsonaro
Advocacia administrativa e descaminho foram citados em documento que instaurou inquérito que investiga o caso
O inquérito instaurado pela Polícia Federal sobre o caso das joias apreendidas pela Receita — que seriam presente do governo da Arábia Saudita para a ex-primeira-dama Michelle Bolsonaro e são avaliadas em R$ 16,5 milhões — vai investigar a "possível ocorrência" dos crimes de descaminho e advocacia administrativa.
Segundo especialistas ouvidos pelo Globo, há ainda outros crimes que poderão ser apurados conforme novas informações forem reveladas.
Descrito no artigo 334 do Código Penal, o crime de descaminho diz respeito aos casos de bens que entram ou saem do país sem respeitar os trâmites burocráticos e tributários necessários. A pena é de 1 a 4 anos de prisão.
A legislação brasileira estabelece que bens trazidos do exterior com valor acima de R$ 1 mil devem ser declarados a Receita Federal. Um imposto de 50% sobre o valor excedente deve também ser aplicado. Caso a mercadoria não seja declarada e ainda assim encontrada e confiscada por um agente, soma-se o pagamento de uma multa de 100%.
Há exceções, porém, como é o caso de presentes dados a autoridades brasileiras quanto à incidência da tributação. No entanto, ainda que o imposto não se aplique, o bem continua tendo de ser declarado — nesse caso, como de propriedade da União. Não foi isso que ocorreu. As joias milionárias foram descobertas na mochila de um assessor do ex-ministro de Minas e Energia Bento Alburquerque, no aeroporto de Guarulhos, quando a comissão voltava da Arábia Saudita.
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— A pessoa que trouxe tinha de informar que estava entrando com aquilo. Se fosse para o Estado, tinha que informar que era do Estado. Se fosse para a pessoa física, teria de informar da mesma forma — diz a advogada e professora da PUC-Rio, Victória Sulocki. — O dever de informar não foi respeitado. Com isso, já temos esse possível crime de descaminho.
O outro crime mencionado no inquérito é o de advocacia administrativa, descrito no artigo 321 do Código Penal, que estabelece ser crime alguém usar da qualidade de funcionário público para atender interesse privado, com a pena mínima de um a três meses de detenção e multa. A pena pode ser maior, caso o interesse seja identificado como ilegítimo, podendo chegar até um ano de detenção.
Segundo Sulocki, há indícios disto no comportamento do então secretário da Receita Federal, Julio Cesar Vieira Gomes, algo que ainda deve ser melhor explicado futuramente pela investigações, aponta. Gomes ordenou a Superintendência da Receita em São Paulo que ignorasse protocolos administrativos e entregasse as joias retidas em Guarulhos para um militar enviado pelo gabinete de Bolsonaro no final do governo.
A um subordinado, Júlio Cesar Vieira Gomes solicitou, por meio de um e-mail, que o pedido da Presidência para liberar as joias fosse atendido, passando por cima das etapas necessárias para a assinatura de um Ato de Destinação de Mercadoria (ADM). Outras figuras envolvidas no escândalo, e que teriam agido para tentar liberar as joias, como o ex-ministro Bento Albuquerque, também poderiam vir a se enquadrar nesse tipo penal.
— Ele (Júlio Cesar Gomes) não foi por vias normais tentar resolver isso. Então, quando escreve o "Solicito atender", sugere estar patrocinando interesse privado — aponta Sulocki, para quem ainda existem muitas lacunas a serem preenchidas no caso — Não sabemos a titulo de que essas joias foram trazidas para o Brasil.
Assim, por exemplo, faltaria identificar qual interesse privado que estaria sendo atendido pelas ações dos envolvidos no escândalo.
— Cada autor teria uma conduta diferenciada. Quem faz advocacia administrativa o faz no interesse de alguém, que poderia estar cometendo um crime mais grave — diz o professor de Direito da Universidade de São Paulo, Sergio Salomão Shecaira, apontando ainda para informações que faltam serem apuradas — Precisamos saber ainda dentro da cadeia de ordens, quem estaria dando a ordem primeiro.
Outros crimes
O crime de peculato também foi mencionado pelo ministro da Justiça Flávio Dino (PSB) em uma postagem no Twitter sobre o caso. Na publicação, o ex-governador do Maranhão cita ainda lavagem de dinheiro. Segundo os especialistas ouvidos pelo GLOBO, no entanto, não é possível ainda determinar a ocorrência destes dois delitos sem novas informações e eles poderão surgir caso a investigação revele novos elementos.
O crime de peculato dispõe da apropriação de "dinheiro, valor ou qualquer outro bem móvel, público ou particular" feita por funcionário público e admite tentativa. No entanto, no caso, é necessário ainda determinar exatamente se quem agiu para tentar retirar as joias o fez com o objetivo de permitir alguém de se apropriar dos bens — caso no qual poderia se configurar tentativa.
Já o crime de lavagem de dinheiro diz respeito ao ato de "ocultar ou dissimular a natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade de bens" provenientes, direta ou indiretamente, de infração penal.
— A lavagem necessita de um crime antecedente. É muito hipotético no momento — diz Sulocki, para quem a eventual responsabilização do ex-presidente da República e da ex-primeira-dama depende do que será revelado pelas investigações. — Do ponto de vista das investigações, seria preciso encontrar indícios para ter consequências jurídicas para eles. Alguns já existem, como o fato de o ajudante de ordens da Presidência ser enviado para resgatar as joias.
Outra possibilidade investigada pela Polícia Federal é a de que o governo Bolsonaro tenha dado uma contrapartida ao governo saudita em troca das joias, como revelado pelo G1. A PF, segundo o portal, irá analisar os negócios fechados durante o governo com a Arábia Saudita em busca de vantagens fora do normal. Caso isso venha a ser confirmado, trataria-se de um caso de corrupção passiva.