Venda de sentenças: "Constrangimento é coletivo, mas fatos serão apurados", diz o presidente do STJ
Ministro Herman Benjamin afirma ainda que a Justiça Eleitoral precisa ser mais célere na punição e avalia que os desmatamentos no Brasil precisam ser combatidos com aplicação da lei
Prestes a completar dois meses na presidência do Superior Tribunal de Justiça ( STJ), o ministro Herman Benjamin já teve de enfrentar uma crise estridente: a Polícia Federal (PF) investiga um suposto esquema de venda de decisões envolvendo servidores da Corte. Em entrevista ao Globo, o magistrado diz que o caso provoca tristeza entre os seus colegas e defende uma apuração profunda do caso.
— Nós, os ministros, e os próprios servidores, estamos muito vulneráveis ao mau uso por uma minoria da minoria deste poder que cada um tem de trabalhar uma decisão judicial que depois será assinada por um juiz — diz Benjamin, que chama a atenção para o volume de processos: — Como é que se pode imaginar que um ministro vai ter controle total do seu gabinete quando, a cada cinco minutos, será elaborada uma decisão?
O ministro paraibano, que foi membro do Ministério Público antes de ingressar na Corte em 2006, ganhou notoriedade nacional após ser o relator no Tribunal Superior Eleitoral (TSE) do processo em que recomendou a cassação da chapa Dilma/Temer, em 2017. Foi voto vencido. De lá para cá, decidiu não tocar mais no assunto. Mas avalia que a Justiça Eleitoral “é uma gigante na aparência e na apuração de ilícitos é uma anã”.
Benjamin recebeu o Globo no amplo gabinete da presidência do STJ, em Brasília, rodeado por fotografias feitas na região amazônica por Sebastião Salgado, seu amigo de longa data. Referência em questões ambientais, o ministro diz que “o maior incentivo ao desmatamento no Brasil é a desmoralização da força da lei” e que o Poder Judiciário tem o dever de punir quem devasta o país.
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A Polícia Federal está investigando um suposto esquema de venda de decisões no STJ. Quais medidas foram tomadas para apurar esse caso?
De 16 de outubro de 2023 até 15 de outubro de 2024, entraram no STJ 518 mil processos. Isso significa dizer que cada ministro recebeu 17 mil processos. Isso significa dizer que, contando os dias úteis, os ministros teriam que decidir sobre 197 processos. Dividindo esses dias úteis por oito horas, são aproximadamente um processo a cada cinco minutos por ministro. Eu pergunto: isso é viável? Como é que se pode imaginar que um ministro vai ter controle total do seu gabinete quando, a cada cinco minutos, será elaborada uma decisão?
Nós dependemos dos servidores. São mais de três mil servidores que estão profundamente amargurados com esta nuvem que paira sobre o trabalho deles. Nós, os ministros, e os próprios servidores, estamos muito vulneráveis ao mau uso por uma minoria da minoria deste poder que cada um tem de trabalhar uma decisão judicial que depois será assinada por um juiz. Não há instituição no mundo, nem nos países escandinavos, que esteja absolutamente imunizada contra casos de corrupção.
Há indícios, então, de que a suposta prática de venda de sentença teria ocorrido por servidores dos gabinetes?
Nós estamos investigando isso internamente. A Polícia Federal também. Foram identificados indícios críveis em relação a um servidor. Esse servidor teve o PAD (Processo Administrativo Disciplinar) instaurado e já está afastado. E a investigação continua em relação aos outros. Espero que em breve nós tenhamos isso definido. Já na parte da Polícia Federal as investigações estão ocorrendo, e eu não tenho controle do que está se passando. E nem quero. O que eu posso fazer, e tenho feito, é colaborar. Inclusive a apreensão de computadores já foi feita. Nós os enviamos para a Polícia Federal.
A investigação foi remetida ao Supremo Tribunal Federal porque foram encontrados indícios de uma transação financeira suspeita envolvendo uma autoridade com prerrogativa de foro. O que isso significa?
Eu não tenho esses elementos. Essa informação não consta em todos os documentos que chegaram ao Superior Tribunal de Justiça. O que posso dizer é que os Ministros do STJ, sem exceção, são os maiores interessados em apuração rápida, completa e exemplar de eventuais desvios isolados de conduta na tramitação de processos.
Temos centenas de primorosos servidores concursados, com reconhecida qualificação técnica e, por vocação pessoal, dedicados ao exercício republicano da função pública. Estamos permanentemente de olhos e ouvidos bem abertos. O constrangimento é coletivo, de todas as ministras e ministros, por ver o nome do Superior Tribunal de Justiça envolvido em uma onda de notícias vagas. Há uma profunda amargura. O nosso sentimento é de profunda tristeza, mas ao mesmo tempo de certeza que este tema será investigado em profundidade. Para quem eventualmente descumpriu a lei, que as sanções e outras providências venham.
Depois dessa investigação, o que mudou na prática para garantir maior segurança dentro dos gabinetes em relação aos julgamentos do processo?
Essa é uma pergunta importante. É olhar para frente. É exatamente isso que eu tenho conversado com os meus colegas. Uma coisa é investigar em profundidade. Outra coisa é dizer o que nós precisamos mudar. E não é uma utopia de achar que vai mudar e vai acabar com incidentes de mau uso da função pública como esses que eventualmente tenham ocorrido.
Mas pelo menos para criar mecanismos de controle, para mitigar. Isto já está em estudo e algumas outras providências estão já sendo implantadas. O STJ investe no aperfeiçoamento contínuo de mecanismos de controle de fluxo de informações, com o objetivo de ao máximo dificultar ataques externos (hackers) e internos (quebra de sigilo processual, manipulação de conteúdo ou divulgação antecipada de decisões).
Uma tarefa difícil em qualquer lugar do mundo, agravada no STJ pelo volume insustentável de 518 mil processos recebidos apenas nos últimos doze meses. Então, acho que a primeira consequência concreta que já está ocorrendo é uma certa uniformização no modo de funcionamento dos gabinetes.
Nesta semana, o STJ definiu duas listas tríplices de candidatos que serão utilizadas para o presidente escolher dois nomes que preencherão as vagas abertas no tribunal. Quais foram os recados do resultado dessa votação pelos ministros da Corte?
Não há recados, mas há lições. Quais são as conclusões que nós podemos tirar? Em primeiro lugar, um tribunal que se preocupa com a desigualdade de gênero. Isso é inequívoco. Foi a primeira vez que o Superior Tribunal de Justiça escolheu duas listas em que o tema gênero foi motivo de diálogo permanente entre os colegas. Somos o único tribunal no mundo a ter esse poder enorme de escolher os seus membros.
Então, atitudes de desrespeito à paridade de gênero, nós não poderíamos imputar a ninguém, exceto a nós próprios. A segunda lição é que a urna eletrônica, que é a obra da gestão da ministra Maria Tereza, transformou profundamente a forma com que os ministros chegam a consenso de fato ou consenso apenas aparente.
Como assim?
Consenso de fato, quando realmente se acorda e vamos cumprir o que foi acordado. E o consenso das aparências, o consenso das traições. Porque a urna eletrônica impediu, em primeiro lugar, que o vizinho veja como o colega está votando. Em segundo lugar, que se tirasse fotografia dos votos. E, em terceiro lugar, o controle mesmo desses votos. Não estou dizendo que isso tenha acontecido no passado.
Mas a urna eletrônica funcionou como um anteparo a esse tipo de possibilidades, de controle da liberdade absoluta, da soberania do voto. Então, são votos de convicção. Não são votos porque é uma exigência de um grupo, uma determinação, por assim dizer, de uma corrente de pensamento ou política interna. Para mim, esta é a segunda importante lição que nós tiramos. No passado longínquo, não era assim. O processo de escolha tinha muito do caciquismo e do grande líder.
Um dos recados das listas tríplices do STJ foi a derrota candidato do presidente Lula, o desembargador Rogério Favreto. Por que isso aconteceu?
Não houve derrota do presidente Lula. O candidato que se diz que o presidente tinha maiores simpatias teve 14 votos, três a menos do que precisava para entrar. Eu estive várias vezes com o presidente da República. Ele nunca me pediu voto para ninguém. Nem aliados dele.
Por que o Judiciário tem baixa representatividade feminina?
É um aspecto histórico, mas também decorre de uma certa passividade, de achar que é natural, quando, na verdade, não é. É muito difícil mudar o Poder Judiciário. E há sempre uma desculpa eloquente, que aparentemente responde ao questionamento.
Mas eu acho que nós estamos mudando. Talvez isso demore um pouco mais e talvez precise de uma posição mais incisiva por parte dos integrantes. Me refiro ao TST (Tribunal Superior do Trabalho), aqui (STJ) e ao próprio STM (Superior Tribunal Militar). Sem falar do Supremo Tribunal Federal, que só tem uma mulher.
O senhor foi relator no Tribunal Superior Eleitoral do processo de cassação da chapa Dilma/Temer e acabou sendo vencido por um voto. Sete anos depois, o que o senhor acha que mudou na Justiça Eleitoral?
Eu não falo daquele processo. Foi um processo tão difícil. Eu não falo. Um dia eu vou escrever sobre aquele processo. A Justiça Eleitoral tem méritos inequívocos, mas ela tem defeitos que precisam ser enfrentados. Não é possível ter juízes eleitorais por dois anos. A maioria é gente muito qualificada e íntegra, com conhecimento profundo do Direito Eleitoral. Mas o que estamos discutindo é o modelo e a repercussão desse modelo na confiança que a sociedade precisa ter na sua justiça eleitoral.
A minha proposta é que os juristas que se tornam ministro do TSE têm que ter os mesmos impedimentos dos juízes e têm que receber um salário igual. Além disso, devem ter quarentena posterior de dois anos e mandato maior, que não corresponde ao início do mandato do presidente da República.
Em sua visão, como a Justiça eleitoral deve lidar com a notícia falsa divulgada pelo candidato derrotado de São Paulo Pablo Marçal contra o seu adversário Guilherme Boulos às vésperas da votação no primeiro turno?
Eu não falo sobre o episódio, porque está sub judice, e eu não comento questões ou fatos que estão sendo apreciados pelo Poder Judiciário. Agora, a Justiça Eleitoral é uma gigante na aparência e na apuração de ilícitos é uma anã. A função de uma Justiça Eleitoral não é apenas fazer as eleições. É também assegurar a inteireza do processo eleitoral e o funcionamento dos partidos políticos.
Temos que olhar para o antes e depois das eleições. E o depois são os chamados crimes eleitorais, que muitas vezes prescrevem. E não é à toa que candidato corrupto briga para tirar o seu processo da justiça federal e da justiça estadual para ir para a Justiça Eleitoral. Primeira razão, as penas são quase insignificantes. E, segunda razão, consequência da primeira, é que as chances de prescrição são muito elevadas. Portanto, a Justiça Eleitoral é magnífica na condução do processo eleitoral, mas, por deficiência material e deficiência legislativa, deixa muito a desejar sobretudo no período posterior às eleições.
De que forma as propostas em tramitação na Câmara dos deputados de limitar o poder do STF afetam o Poder Judiciário?
Eu não comento fatos das outras Casas. Mas nós podemos olhar para o mundo. O que assistimos no Brasil não é exceção. O que estamos assistindo hoje são investidas, e a expressão é esta, em resposta ou mesmo em vingança à atuação constitucional e legal dos juízes e dos tribunais. Hoje, pode ser em uma Corte. Amanhã é nas outras Cortes. E, depois de amanhã, em todos os juízes.
E nós não podemos ter um Estado de Direito com juízes amedrontados. E em muitos países é assim: o juiz tem medo. No momento que o juiz tem medo, ele não é mais juiz. Todas as instituições estão submetidas a controle, seja do voto popular, seja de mecanismos outros que têm na origem na elaboração constitucional ou legislativa o voto popular. O que não se pode ter é vingança.
O Poder Judiciário precisa de um novo código de conduta?
Eu li integralmente a regulamentação da Corte Suprema americana. Aquele texto diz muito menos do que está na nossa Lei Orgânica da Magistratura, que é muito mais completa. Agora, a lei precisa ser conhecida, e a lei precisa ser debatida, porque tem expressões que são vagas. E nós precisamos casar essas expressões vagas com a regulação internacional. A Lei Orgânica da Magistratura, em primeiro lugar, precisa ser lida e conhecida pelos juízes. Eu não vejo esse esforço que ocorre em outros países de cursos obrigatórios, quase que anuais, sobre ética judicial.
Como o Poder Judiciário pode contribuir para conter desmatadores e cessar o histórico de degradação ambienta do Brasil?
É tão simples: aplicar a lei. Não é bater às portas do Poder Judiciário. O Brasil não precisa de juízes ativistas para a proteção do meio ambiente. O ativismo é da Constituição e das leis. O Brasil precisa é de aplicação da lei, e o Poder Judiciário precisa também ter os olhos abertos para a aplicação da lei. Porque um processo de desmatamento, quando ao Poder Judiciário julgar, já prescreveu.
E mesmo que não tivesse prescrito, a resposta do Estado já seria inócua. Imagina uma propriedade que está sendo utilizada ilegalmente em uma área de uma propriedade, ou um imóvel inteiro em terra pública, durante 20 anos. É a desmoralização do sistema normativo.
O maior incentivo ao desmatamento no Brasil é a desmoralização da força da lei, seja porque os que deveriam estar implementando a lei não estão sequer próximos, seja porque estão próximos e são coniventes com as ilegalidades. Menos de 2% das multas, que são milionárias, impostas pelo Ibama são pagas. E não são pagas porque em todos esses casos é utilizado legitimamente o mandado de segurança, e esta multa fica suspensa por 10 anos, 15 anos.
Como resolver esse problema?
Como eu disse, a lei existe e precisa ser aplicada. Só que a própria lei tem mecanismos para inviabilizar ou dificultar a sua aplicação. O foco em outros países já não é mais legislar para proteger o meio ambiente. A palavra-chave é o cumprimento da lei. E é exatamente o que falta no Brasil. A Raquel Dodge (ex-procuradora-geral da República) entrou com diversas ações contra o desmatamento da Amazônia, baseando-se em fotos de satélite com apoio do Ibama. Metade dos juízes federais que receberam os processos rejeitou liminarmente as ações sob o argumento de que não podiam ser propostas como foram, porque o Ibama deveria ter ido lá no meio da floresta e identificar quem fez o desmatamento.
O caso veio para o STJ e eu fui o relator. O que eu disse foi o seguinte: veja GPS é utilizado em guerra para matar as pessoas, então eu posso usar o GPS para proteger a floresta. Com isso, mudamos a jurisprudência e agora a maior parte dessas já está julgada. Isso mostra que o Judiciário é parte da solução, mas é também parte do problema.
Quais são as suas na presidência do STJ?
Umas das ênfases é a inteligência artificial para que nós possamos utilizá-la de uma forma inteligente. A inteligência artificial vem para auxiliar a prestação jurisdicional, mas jamais para substituir o juiz. Há alguns exemplos de uso da inteligência artificial: classificação de processos, análise das teses, até a preparação de esboço. Outra frente é atacar o problema do volume de processos e de procedimentos da Terceira Seção, que julga casos de Direito Penal.
Os números são impressionantes. Teremos, na próxima semana, a chegada de 100 juízes, 10 para cada gabinete, especializados em Direito Penal, sem sair da sua jurisdição e sem prejudicar a sua produção do último ano. Era algo que imaginava que ia conseguir talvez em oito meses e nós estamos conseguindo em dois meses.