EUA X China: os rumos do conflito entre duas potências
Disputa entre os países se ramifica e abrange várias frentes, com reflexos econômicos, tecnológicos, tendo como gatilho a pandemia do novo coronavírus
Em janeiro de 2020, a Casa Branca foi cenário de um encontro entre o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, e o presidente da China, Xi Jinping. Na ocasião, as duas maiores economias do mundo estabeleceram um acordo que era visto como o primeiro passo para cessar a guerra comercial que se aprofundava e deixava a economia mundial em alerta. Seis meses depois, e com a pandemia do novo coronavírus (Covid-19) como um fator determinante, o atrito entre os EUA e a China atingem o ápice em diversas frentes.
Na diplomacia, ambos determinaram fechamentos de consulados do outro, Trump também frisa constantemente que o Covid-19 é um vírus chinês - por ter eclodido no país asiático - e ambos países travam uma corrida em busca da primeira vacina que dê resposta imunológica capaz de frear a pandemia. A hostilidade ganha reflexos econômicos e tecnológicos com o desenvolvimento da tecnologia 5G como um grande propulsor.
A instabilidade entre duas potências com ideologias distintas resgata na memória o período da Guerra Fria travada entre 1945 e 1991 entre os Estados Unidos e a União Soviética. No entanto, para o professor de Ciências Políticas e Relações Internacionais da Universidade Católica de Pernambuco (Unicap), Thales Castro, o que ocorre agora é, na verdade, uma "guerra quente". "As animosidades entre Washington e Pequim serão cada vez mais visíveis, com questões de biotecnologia, guerra comercial e também de rivalidade em relação à América Latina e África. A pandemia afetou de maneira crítica essa janela de oportunidade para o acirramento da rivalidade e desconfiança entre ambos os países. A perspectiva é de que os dois países entraram numa rota perigosa de descrença um no outro", alerta.
Professor de Relações Internacionais da UFPE e pesquisador do Instituto de Estudos da Ásia da UFPE, Renan Holanda enfatiza que, diferentemente do contexto da Guerra Fria, não devemos observar conflitos militares, diretos ou indiretos, envolvendo China e EUA. "Uma questão fundamental é a interdependência gigantesca entre os dois países, diferente da URSS e os EUA que tinham laços quase inexistentes, o comércio entre EUA e China é brutal, então é problemático transpormos esse termo", justifica.
O cônsul geral dos EUA no Recife, John Barrett, destaca que os EUA "não estão buscando nenhum tipo de conflito". "Estamos com o compromisso de ter uma relação construtiva, baseada em regras e normas", garante. Ele frisa que as diferenças entre os países podem ser superadas com alinhamento. "Podemos superar juntos quando a China participar do mundo internacional, observando e respeitando as mesmas regras que países como o Brasil seguem. O Brasil e os EUA têm muito mais em comum como parceiros", afirma, destacando que 55% dos produtos exportados do Brasil aos EUA têm valor agregado e “que gera mais empregos em tecnologia, inovação, então reflete uma relação mais avançada", pontua.
O CEO do Lide China, grupo que reúne líderes empresariais do País asiático, José Ricardo dos Santos Luz, ressalta a importância da China para o Brasil. "A gente sempre pondera e ressalta que a China é o maior parceiro comercial do Brasil desde 2009, com a maior gama de exportação e importação. A China além de ser o maior parceiro, tem diversos projetos relacionados ao Brasil e busca promover uma aldeia global em um futuro comum compartilhado", diz, frisando que, somente no primeiro trimestre de 2020, "a exportação do frango brasileiro para a China aumentou em 124%, e da carne suína em 275%".
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Encruzilhada brasileira
Tendo a China como principal parceiro comercial e um alinhamento ideológico declarado com os EUA, o Brasil se vê em uma encruzilhada, no entendimento de Thales Castro. "A China é o nosso principal parceiro comercial, tem investimentos estratégicos em mineração, telecomunicações, agronegócio, porém, ao mesmo tempo, o Brasil tem um alinhamento político ideológico com os EUA muito sério, entre Bolsonaro e Trump. É uma questão dilemática que vai exigir cada vez mais do Itamaraty, em termos de postura, inserção, visão estratégica comercial, para que nenhum dos dois polos fique prejudicado", avalia Thales.
A diplomacia, inclusive, tem sido um ponto dissonante da economia, na relação entre Brasil e China. "Diplomaticamente, Brasil e China estão em permanente conflito desde que a pandemia eclodiu, com declarações como a do ex-ministro da Educação Abraham Weintraub e do próprio ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo. Apesar disso, os fluxos comercial e de investimentos entre Brasil e China permanecem", frisa Renan Holanda.
José Ricardo dos Santos Luz afirma que existem "duas camadas" na relação atual entre o Brasil e a superpotência asiática. "O chinês comum não tem muita ideia do que está acontecendo ao Brasil. Já o governo chinês é muito pé no chão, eles têm muito claro que é uma parte do governo (uma ala ideológica) e que não é a visão do Brasil como um todo", diz. Janaína Silveira, editora da Agência Xinhua, segue entendimento similar. "A relação de Brasil-China é uma relação de estado para estado. Esse governo uma hora poderá sair ou não, mas a China entende que é uma ala ideológica e que é uma situação passageira, que os estados vão continuar por muitos anos ainda".
Estratégia eleitoral
A eleição de novembro, nos Estados Unidos, terá peso nos passos seguintes da cisão entre norte-americanos e chineses. No recorte de momento, o cenário não é favorável para a reeleição do republicano Donald Trump, desgastado, sobretudo, pela má gestão da Covid-19 e pelos protestos motivados pelo assassinato de George Floyd, um homem negro, por policiais. Renan Holanda acredita que a relação conflituosa com a China faz parte de uma estratégia.
"Trump está desgastado e sabe que episódios internacionais podem ter grande repercussão interna se o líder conseguir manipular a narrativa a seu favor. Isso ocorreu, por exemplo, no 11 de setembro com Bush e na Crise dos Mísseis de Cuba com Kennedy. Muito conveniente para os EUA tentar buscar um inimigo externo e mais ainda que esse inimigo seja o principal desafiante à sua hegemonia na contemporaneidade. A doença surgiu na China, e adotou-se um discurso de que os chineses são culpados por isso", explica.
Caso Trump seja derrotado pelo candidato democrata Joe Biden, a tendência é de redução da instabilidade na relação entre as duas potências. "Trump sendo reeleito, a situação de animosidade se perpetuará. Caso Biden vença, teremos uma certa melhora, uma certa distensão, mas continuarão sendo relações da disputa de um projeto hegemônico mundial", prevê Thales Castro, acrescentando que uma possível derrota de Trump não significa uma mudança de postura imediata dos EUA. "Biden vai apenas reduzir um pouco a retórica bastante instigada que Trump tem desenvolvido nos últimos anos", afirma.
Corrida pela vacina contra o coronavírus acirra o conflito
Em meio à tensão, uma pandemia. Mais novo agente infeccioso do grupo de parasitas conhecido como ‘coronavírus’, o Sars-Cov-2 se espalhou a partir do Gigante Asiático, onde os primeiros casos foram registrados ainda em dezembro do ano passado. Sete meses depois, a Covid-19 já deixou milhões de doentes e centenas de milhares de mortos pelo mundo. Enquanto o republicano Donald Trump responsabiliza a Organização Mundial da Saúde (OMS) e o governo de Xi Jiping pela dimensão da tragédia - com acusações de negligência acentuadas por “teorias da conspiração” que circulam na internet -, a ciência se coloca em uma corrida mundial com vista à descoberta de uma vacina, já que, sem ela, a vida normal não pode voltar.
Dos mais de cem estudos realizados hoje, entre os que se encontram em fase mais avançada, estão pesquisas dos Estados Unidos, Alemanha, Rússia, China e Reino Unido - as duas últimas com testes no Brasil. O país que primeiro descobrir um imunizante eficaz contra o vírus terá, literalmente, a salvação da humanidade. E, no meio disso tudo, a questão do acesso e da patente.
A patente é um título de propriedade intelectual que concede direitos de exploração comercial ao responsável por uma descoberta científica. Diante do quadro geral de pandemia, a OMS aprovou uma resolução que suspende temporariamente alguns dos privilégios garantidos pela política para garantir que todas as populações tenham acesso à vacina. A proposta recebeu o apoio de 194 países. Mas os Estados Unidos, que em julho deram início à saída formal do órgão das Nações Unidas, foram contra. “Não há uma regulamentação que obrigue o país a fazer isso (aderir). O que existe é essa resolução sugerindo a quebra de patente”, explica a advogada e doutora em Direito Médico pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), Mérces da Silva Nunes.
Para se adiantar a esse cenário, o Brasil comprou 100 milhões de doses da vacina que está sendo desenvolvida pela Universidade Oxford, do Reino Unido. Já o Instituto Butantan, de São Paulo, fechou parceria com a farmacêutica chinesa Sinovac, ironizada pelo presidente Jair Bolsonaro, que disse que a testada pela União não é “daquele país”. Os investimentos, porém, não têm garantia de retorno. “Se essas vacinas não funcionarem, a gente começa de novo do zero, e o Governo Federal vai ter que gastar muito mais. Então, nós temos o problema de propriedade intelectual, possibilidade de contratos de transferência de tecnologia e disponibilidade. Vamos supor que sejam os Estados Unidos pelas farmacêuticas Moderna e Pfizer. Tudo vai depender de qual é o país, a capacidade de produção de doses e a que preço vamos ter comprar”, analisa a doutora Mérces Nunes.
Na visão do médico e neurocientista Miguel Nicolelis, professor catedrático da Universidade Duke, nos Estados Unidos, e coordenador do Comitê Científico do Consórcio Nordeste, a comunidade internacional deve pressionar os produtores de vacina para evitar um monopólio, caso ela seja criada por uma fabricante dos EUA. Com relação ao Brasil, o especialista diz que o País tem capacidade de produzir uma vacina por conta própria. “Essa posição americana não é a mesma dos outros países. A China não concorda com ela. Ainda não está claro se a posição americana será predominante”, pondera. “A Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz) tem uma tradição reconhecida no mundo inteiro. O Brasil tem conhecimento técnico para fabricar a própria vacina”.
Para ele, a corrida em busca dessa vacina não pode prejudicar a qualidade do imunizante, que, para se provar seguro, sem reações ou efeitos colaterais danosos, precisa ser testado em várias etapas. “É por isso que se faz um estudo com três fases. E depois, se surge alguma coisa ao longo desse uso, ela pode ser suspensa também. Já aconteceu várias vezes”, ressalta. Nicolelis também argumenta que teorias sobre “vírus chinês” e a suposta má qualidade de uma vacina produzida por chineses não tem base científica. “Para ser usada, qualquer vacina vai ter que preencher padrões internacionais. No momento em que for chancelada pela comunidade internacional, não interessa de onde ela vem”, avalia.
Para o cônsul geral dos Estados Unidos no Recife, John Barrett, independentemente do resultado dessa corrida, o imunizante deve ser garantido para todas as populações prejudicadas pela Covid-19. “O importante é que quem tiver a vacina possa disponibilizar para ajudar quem precisa. Nós estamos trabalhando, a Oxford também com testes no Brasil, a Pfizer já na terceira fase nos EUA, então a vacina deve ser distribuída a todos que são atingidos pela pandemia”, pondera.