Governo Bolsonaro pagou viagens para engenheiro indiciado por golpe mostrar supostas fraudes
Registros apontam que o objetivo oficial dos encontros era ouvir uma associação que defende o voto auditável, bandeira levantada pelo ex-presidente durante a gestão.
O governo do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) gastou R$ 7.687,94 em duas viagens de urgência para o engenheiro e fundador do Instituto Voto Legal Carlos Rocha, um dos 37 indiciados pela Polícia Federal (PF) no inquérito sobre a suposta tentativa de golpe de Estado após a derrota do antigo chefe do Executivo em 2022.
O valor foi utilizado para custear o transporte do engenheiro ao encontro com o então titular do Ministério da Ciência e Tecnologia e hoje senador Marcos Pontes (PL-SP) nos dias 26 de julho e 30 de julho de 2021. A compra de passagens de urgência só pode ser autorizada pelo próprio chefe da pasta ou pelo secretário-executivo.
Como mostrou o g1, registros do ministério apontam que o objetivo oficial das viagens era ouvir uma associação que defende o voto auditável, bandeira levantada por Bolsonaro durante o governo sem que fossem apresentadas provas de falhas nas urnas eletrônicas.
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Enquanto o primeiro encontro não teve registro, o segundo ocorreu no Palácio do Planalto. Na ocasião, também estiveram presentes Bolsonaro (PL) e o ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), general da reserva do Exército Augusto Heleno, também indiciado pela tentativa de golpe de estado.
Pontes foi citado no inquérito como responsável por indicar o engenheiro para Valdemar Costa Neto, presidente do PL. A sigla contratou Rocha por R$ 1 milhão para elaborar um relatório que apontou, sem provas, indícios de fraudes nas urnas eletrônicas no 2º turno da eleição presidencial passada.
A PF aponta que o engenheiro produziu os documentos tendo consciência de que não havia irregularidade nas urnas. Segundo a investigação, o material foi utilizado pela sigla para questionar o resultado da eleição e embasar a propagação de informações falsas sobre as urnas eletrônicas para incitar a população contra a derrota do ex-presidente.
Para os investigadores, esse foi o “o último ato” oficial do grupo que pretendia impedir a posse de Lula e serviu de fundamento “para a tentativa de golpe de Estado, que estava em curso”.
O senador afirmou à coluna Malu Gaspar, do GLOBO, que Valdemar lhe perguntou se conhecia alguém que entendia da tecnologia das urnas e, em resposta, indicou Rocha.
“Valdemar perguntou a mim, como ministro de Ciência e Tecnologia, se conhecia alguém que entendia da tecnologia das urnas. O profissional que eu sabia que tinha trabalhado com o desenvolvimento do equipamento era o engenheiro do ITA Carlos Rocha. Assim, passei o contato dele, e aí encerrou minha participação. Como ministro de Ciência, Tecnologia e Inovações, é comum você ser consultado sobre muitas áreas de desenvolvimento tecnológico para o país”, afirmou Pontes ao blog.
“Temos uma associação de ex-alunos que conecta todos nós. Através dela, ele havia me procurado como ministro e disse que tinha uma inovação incremental para aperfeiçoar a tecnologia que ele havia desenvolvido nos anos 90 (para as urnas). Não tínhamos no ministério nenhum projeto ou programa no setor. Mas fiquei com o contato dele associado a essa tecnologia. Foi esse contato que passei quando perguntado pelo presidente Valdemar.”
Entenda os crimes atribuídos a Bolsonaro
A PF atribuiu três crimes ao ex-presidente no inquérito que investiga se ele articulou um plano para se manter no poder após perder as eleições de 2022. O relatório veio a público na semana passada, após decisão do ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF). Somadas, as penas máximas desses delitos chegam a 30 anos de prisão.
São eles:
- tentativa de golpe de Estado,
- tentativa de abolição do Estado democrático de direito,
- e organização criminosa.
Em diversas ocasião, Bolsonaro negou ter participado de qualquer trama golpista. Segundo a PF, há indícios que comprovam que o ex-presidente analisou e pediu alterações no texto de uma minuta golpista.
Entre as propostas aventadas nesse texto estava a possibilidade de prisão de ministros do STF, como Alexandre de Moraes e Gilmar Mendes, e do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG). Conforme as apurações, Bolsonaro pediu para retirar os nomes de Gilmar e Pacheco da minuta.
A prisão das autoridades faria parte de um plano para interferir nas eleições de 2022 e no Tribunal Superior Eleitoral (TSE), que, na visão de Bolsonaro, teria tomado decisões "inconstitucionais" em desfavor dele. Para salvarguar as tais prerrogativas constitucionais, as Forças Armadas seriam acionadas e agiriam como um "poder moderador", com o objetivo de reverter o resultado eleitoral.
Conforme a PF, Bolsonaro e seus auxiliares atuaram para disseminar notícias falsas e descredibilizar o processo eleitoral brasileiro, com o intuito de criar um ambiente favorável para uma intervenção militar. Fazia parte dessa iniciativa a reunião que ele convocou com embaixadores para fazer ataques ao sistema de votação brasileiro — o caso acabou o levando a ser condenado pelo TSE por abuso de poder político e uso indevido dos meios de comunicação.
Nessa seara, entra a acusação de tentativa de abolição violenta do Estado democrático de direito descrita no artigo 359-L do Código Penal. "Tentar, com emprego de violência ou grave ameaça, abolir o Estado Democrático de Direito, impedindo ou restringindo o exercício dos poderes constitucionais", diz o texto.
Segundo a PF, o emprego de violência seria feito por meio de integrantes das Forças Especiais do Exército, que seriam acionados para prender Alexandre de Moraes. Os investigadores apontam que o magistrado chegou a ser monitorado no final do governo Bolsonaro.
A organização se daria na junção de mais de três pessoas, em grupo organizado, "de forma estruturada e com divisão de tarefas, valendo-se de violência, intimidação, corrupção, fraude ou de outros meios assemelhados, para o fim de cometer crime". Segundo a PF, a trama golpista envolveu a participação de militares, assessores e ministros do governo Bolsonaro.
Um ponto chave da articulação golpista teria, conforme a PF, ocorrido durante uma reunião ministerial em julho de 2022.
O encontro foi gravado pelo tenente-coronel Mauro Cid, ex-ajudante de ordens de Bolsonaro. No encontro, o ex-presidente diz a seus ministros que "os caras estão preparando tudo para Lula ganhar no primeiro turno" e que seria preciso "fazer alguma coisa antes" do pleito. No entendimento dele, "se a gente reagir depois das eleições", o Brasil viraria um "caos" e "uma grande guerrilha".