Governo Lula tenta evitar reedição de atritos sobre aniversário do golpe militar
Foi justamente no primeiro mandato do petista, entre 2003 e 2006, que o comando do Exército voltou a exaltar a ditadura na chamada "ordem do dia"
Com uma relação até agora marcada por arestas com as Forças Armadas no início de seu novo mandato, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) terá pela frente, no aniversário do golpe militar de 1964, que completa 59 anos daqui a dois meses, a reedição de uma data que motivou turbulências entre governo e caserna ao longo das duas últimas décadas.
Foi justamente no primeiro mandato de Lula, entre 2003 e 2006, que o comando do Exército voltou a exaltar a ditadura em uma das edições da chamada “ordem do dia alusiva ao 31 de março de 1964”. A divulgação de notas militares em celebração do golpe foi coibida na gestão Dilma Rousseff (PT), em meio a atritos com generais do Alto Comando, e retomada por decisão de Jair Bolsonaro em 2019.
Leia também
• Chamado de "golpista" por Lula, Temer diz que presidente "mantém pés no palanque"
• Lula considera "urgente" que Mercosul feche acordo com UE
• Deputado bolsonarista aciona PGR para impedir uso de linguagem neutra na comunicação oficial de Lula
Após quatro anos consecutivos de elogios à ditadura na data do golpe militar, por meio de ordens do dia assinadas pelos comandantes de Exército, Marinha e Aeronáutica, ainda não há uma orientação explícita do governo sobre a data — em entrevista à GloboNews, o ministro da Defesa, José Múcio, disse que ainda é “cedo” para tratar do assunto.
O historiador Carlos Fico, professor da UFRJ e pesquisador da ditadura militar, avalia que seria “totalmente inadequada” uma exaltação ao golpe de 1964 “diante dos fatos recentes”. No dia 8, apoiadores golpistas de Bolsonaro invadiram as sedes dos três Poderes após acamparem, na porta de quartéis, com pedidos de intervenção militar.
As falhas de segurança no Palácio do Planalto, sob responsabilidade do Batalhão da Guarda Presidencial e do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), ampliaram a indisposição entre Lula e o então comandante do Exércio, general Julio César Arruda, que acabou exonerado no último fim de semana.
O ideal é que não tenha uma manifestação (de celebração ao golpe militar), até para não tumultuar mais o ambiente. Mas os generais vêm se manifestando com leituras benevolentes sobre o golpe desde a criação de mecanismos de justiça de transição nos governos Fernando Henrique e Lula, culminando no relatório da Comissão da Verdade no governo Dilma, pontua Fico.
Em 2004, no segundo ano do governo Lula, o então comandante do Exército, general Francisco de Albuquerque, sugeriu em sua “ordem do dia alusiva ao 31 de março de 1964” que os soldados encarassem a data “como uma página de nossa História, com o coração livre de ressentimentos”.
Poucos meses depois, em outubro daquele ano, Albuquerque publicaria uma nota elogiosa à ditadura militar, afirmando que o regime “fortaleceu a economia, promoveu a fantástica expansão e integração da estrutura produtiva”, além de ter contestado evidências de assassinatos políticos por parte dos militares. A turbulência gerada pela nota fez o então ministro da Defesa, José Viegas Filho, pedir exoneração, sendo substituído pelo então vice-presidente, José Alencar.
Em março de 2006, quando Alencar se desincompatibilizou do cargo para disputar a eleição, Lula experimentou sua pior crise com a caserna por conta da ordem do dia assinada pelo general Albuquerque no dia 31 de março daquele ano. Na ocasião, o comandante escreveu que o Exército “orgulha-se do passado, porque nele os valores e postulados da instituição, que se confundem com os da própria nação brasileira, nasceram e se consolidaram”. A nota foi publicada no mesmo dia em que Waldir Pires, ex-ministro do governo João Goulart e exilado pela ditadura, assumia a pasta da Defesa no lugar de Alencar.
Apesar de pressões pela demissão de Albuquerque, Lula o manteve à frente do Exército até fevereiro de 2007, quando, já reeleito, promoveu trocas no comando das Forças.
O golpe de 1964 foi oficialmente removido do rol de datas comemorativas das Forças Armadas em 2011, no primeiro ano do governo Dilma. Na ocasião, o então general da ativa Augusto Heleno foi proibido de fazer uma palestra, no dia do golpe militar, intitulada “A contrarrevolução que salvou o Brasil”. O veto foi atribuído oficialmente ao Exército.
No governo Bolsonaro, em que Heleno assumiu o GSI, a retomada de ordens do dia em celebração ao golpe foi determinada pelo próprio presidente. Em 2019, a nota assinada pelo então ministro da Defesa, Fernando Azevedo e Silva, e pelos comandantes de Exército, Marinha e Aeronáutica disse que os militares “reconhecem o papel desempenhado por aqueles que, ao se depararem com os desafios próprios da época, agiram conforme os anseios da Nação Brasileira”. À época, Azevedo disse que considerava inadequado o uso do termo “comemoração” para a data.
Linha do tempo
Em 2006, nota do Exército acirrou ânimos com governo
No fim do primeiro mandato de Lula, o general Francisco de Albuquerque disse que o Exército “orgulha-se do seu passado” em ordem do dia alusiva ao 31 de março de 1964, data do golpe militar. No mesmo dia, o ministério da Defesa passava a ser comandado por Waldir Pires, que foi exilado pela ditadura.
Sob Dilma, apologia à ditadura perdeu espaço
Em 2011, o dia 31 de março deixou o rol de datas comemorativas das Forças Armadas, e o Exército vetou uma palestra do general Augusto Heleno elogiosa à ditadura. No ano anterior, já com o ministro Nelson Jobim à frente da Defesa, o general Maynard Santa Rosa perdeu um cargo no Exército após atacar a Comissão da Verdade.
Exaltação a 1964 foi retomada por decisão de Bolsonaro
Em 2019, Bolsonaro determinou que as ordens do dia voltassem a celebrar o golpe de 1964, apesar de o então ministro da Defesa, Fernando Azevedo e Silva, não usar o termo “comemoração”. O expediente se repetiu nos três anos seguintes, sempre atribuindo às Forças Armadas um papel de “pacificação” e “estabilização”.