'Governo terá de escolher qual é seu discurso', diz líder ambientalista Marcio Astrini
Coordenador da maior coalizão de ONGs do país, ativista diz que não se considera traído por Lula, mas critica interferência da Casa Civil na pauta ambiental
Na semana que ficou marcada por uma série de retrocessos ambientais avançando no Legislativo, o que deixou ativistas do setor mais estarrecidos foi o a conivência e o apoio do Ministério da Casa Civil do governo Lula às medidas. O líder ambientalista Márcio Astrini, secretário-geral do Observatório do Clima, maior coalizão de ONGs do país, porém, diz que não se considera traído pelo governo Lula, ainda.
"Isso seria uma avaliação muito forte", disse o ativista. "Mas eu acho que subiu um sinal de alerta".
Em meio às mudanças que avançam na tramitação, que incluem a retirada do Cadastro Ambiental Rural (CAR) da pasta do Meio Ambiente, o enfraquecimento da proteção da Mata Atlântica, e a limitação da demarcação de terras indígenas, Astrini diz que essa pauta vai contra o discurso do presidente Lula e do governo.
Para o líder ambientalista, Lula terá que tomar partido na questão, em um embate que envolve sobretudo a Casa Civil e o Ministério do Meio Ambiente, porque o discurso de um setor não se encaixa no de outro.
"Ele terá que escolher", disse o ambientalista em entrevista ao Globo.
Os atos legislativos apontados como ataques ao meio ambiente nesta semana tiveram participação do poder Executivo. O sr. avalia isso como uma traição do presidente Lula aos ambientalistas que o apoiaram na campanha?
Não acho que ele não está traindo, não. Isso seria uma avaliação muito forte. Mas eu acho que subiu um sinal de alerta. Não vai dar para o governo ficar ao mesmo tempo com os compromissos que fez durante a campanha — com o discurso que o presidente Lula adota internacionalmente, e é um discurso muito bom na área ambiental — e ceder às pressões ruralistas e bolsonaristas na área ambiental pelo outro lado. Ele vai ter que escolher. Ou ele cede, ou ele diz que tem compromisso com a área de Meio Ambiente. As duas coisas não dá para acontecer.
Eu não acho que Lula esteja traindo as promessas de campanha dele e, inclusive, acho que ele está convencido de que clima e o meio ambiente são importantes para a imagem internacional do país e até para a política dele de combate à fome e combate à miséria. Mas ele não vai conseguir isso com esse tipo de negociação que está sendo feito com os ruralistas.
"Eu acho que algumas coisas, dá para reverter. Vamos supor que saia a aprovação do PL 490 (sobre terras indígenas). O presidente pode vetar. Para esse 'jabuti' que colocaram na MP 1150 da Mata Atlântica e reduz a proteção, também cabe veto. Sobre a ameaça de criar um um rito rápido de licenciamento para obras de interesse nacional dentro da MP 1154, também cabe o veto. A questão do CAR, mesmo o CAR indo para outro ministério, o governo é um só, né? Ele pode criar uma gestão compartilhada. O mesmo vale para a demarcação de terras indígenas. Existem caminhos para minimizar os problemas que foram criados pelo Congresso".
O que assustou bastante a gente ontem (quinta-feira) foram declarações das pessoas que articulam pelo governo dizendo que os retrocessos eram "bem vistos" por eles, que estava 'tudo bem' e que não existia 'problema nenhum'. Isso soou muito estranho para a gente, porque os problemas na área ambiental existem. Eles podem ser corrigidos, mas eles existem e não podem ser ignorados. E eles vão arranhar bastante o discurso do próprio presidente Lula. Ele tem que ser enfático nisso. É preciso dizer que as coisas não estão bem. Elas estão ruins. Ele tem como resolver, ou pelo menos minimizar, o problema, mas não pode se contentar com esse tipo de retrocesso sendo aprovado.
Muitos projetos de lei ruins para o ambiente são da legislatura passada e não estavam avançado. Essa investida agora é fruto de o setor mais conservador do agronegócio não poder mais contar com aquelas medidas do Executivo favoráveis ao setor, que o ex-ministro Ricardo Salles apelidou de "boiadas"?
No governo Bolsonaro teve mesmo muita "boiada" que andou por decreto. Não era uma "boiada" que andava muito por atos próprios do legislativo, também porque nos anos iniciais da pandemia o Congresso ficou com a votação muito paralisada. Um fator importantíssimo também foram os dois anos de Rodrigo Maia na presidência da Câmara. O Maia assumiu um compromisso de não aprovar retrocesso ambientais e cumpriu. E durante metade do governo Bolsonaro foi ele quem presidiu a Câmara.
Mas teve também muita coisa que andou no Legislativo. Os projetos de lei de grilagem de terras, de liberação de agrotóxicos e de fim do licenciamento ambiental são gravíssimos e foram todos aprovados na Câmara. Depois é que foram paralisados no Senado. Então, muitas coisas andaram. Outras não foram para frente, como a questão de limitar a demarcação das terras indígenas, que sempre foi um objeto de desejo dos ruralistas. Mas eles colocaram isso agora na pauta agora de negociação, com o governo aceitando.
Se a gente contar pelo que está ainda nas comissões, são milhares. Tem desde projetos que aumentam o preço de energia solar até projetos que criam clubes de caça de animais no país. Tem de tudo. Existe uma parcela muito grande de projetos de lei atacando o Código Florestal, por exemplo, que é uma coisa muito sensível para o Brasil, porque o país está buscando assinar acordos internacionais. O acordo do Mercosul com a União Europeia é baseado no cumprimento da legislação brasileira, e agora a gente se pergunta que legislação é essa, porque o Congresso vive atacando a legislação ambiental.
Mas eu diria que os assuntos mais urgentes são os que já estão no Senado. O projeto de lei que libera agrotóxicos cancerígenos no Brasil, por exemplo, retira os ministérios do Meio Ambiente e da Saúde da avaliação desses produtos e é uma coisa gravíssima. O projeto de lei que acaba com o licenciamento ambiental e o projeto de lei que dá anistia para grileiros de terra também estão na etapa final de votação. E está chegando também, infelizmente, esse projeto gravíssimo, o PL 490, que cria um marco temporal ameaçando boa parte das terras indígenas já demarcadas no Brasil.
O espaço para avançar a pauta ambiental dentro da gestão Lula ainda existe? Ou pode chegar uma hora que os ambientalistas em cargos importantes prefiram sair do governo para trabalhar pela sociedade civil?
Essa questão envolve duas coisas. Primeiro, o maior promotor hoje da agenda ambiental no Brasil é o próprio presidente. A cada dois discursos que ele faz, em três ele fala de meio ambiente. Ele fala da importância do desmatamento zero, da agenda de clima, da transição energética... Desde a campanha eleitoral me eu encontrei pessoalmente com ele três vezes, e ele me pareceu uma pessoa realmente convencida da agenda ambiental. A gente nunca teve no Brasil um presidente que falasse tanto da agenda de clima. Ele criou o ministério dos povos indígenas, colocou a Marina Silva no MMA, e ela é referência no setor ambiental. Ele tem acertos muito grandes, e a gente não pode desconsiderar isso.
O que nós estamos fazendo como o setor, agora, e eu acho que a ministra Marina também está indo nessa mesma direção, é mostrar que a Casa Civil, com a articulação política de governo, não pode fazer as negociações que está fazendo dentro da nossa agenda e achar que isso é normal. Eles não podem achar que isso vai ser aceito em nome da governabilidade ou do que quer que seja. Essas negociações que estão sendo realizadas depõem contra o próprio presidente da República. O que nós estamos fazendo é uma pressão para que o próprio presidente não perca a capacidade de manter o discurso ambiental e as realizações ambientais dele.
O Ibama que está sendo atacado é o mesmo Ibama que vai baixar o desmatamento no Brasil. Não existem dois "Ibamas", um que pode ser atacado pelo governo e outro que vai combater criminoso ilegal na Amazônia. Quando parte do governo quer desacreditar o Ibama, como no caso do petróleo na foz do Amazonas, eles estão ajudando também o grileiro de terra e o desmatador ilegal. Esses é que querem ver o Ibama descredenciado. O alerta que a gente está fazendo é que, se o governo tem que negociar com a bancada ruralista, ele precisa escolher outros itens de negociação, não a agenda ambiental.