Indicado ao STF, Kassio repete em tese de doutorado trechos similares a artigos de advogado
Na tese de doutorado, Kassio, indicado para substituir Celso de Mello no STF, também reproduz na íntegra parágrafos da dissertação de mestrado
Além da dissertação de mestrado, a tese de doutorado do juiz federal Kassio Nunes Marques, 48, indicado pelo presidente Jair Bolsonaro a uma vaga no STF (Supremo Tribunal Federal), também apresenta trechos semelhantes a artigos acadêmicos publicados por um advogado conterrâneo do magistrado.
O trabalho acadêmico intitulado "Política Judiciária no fornecimento de medicamentos de alto custo no Brasil em um ambiente de crise e de políticas de austeridade fiscal: teoria, experiência e perspectivas", ao qual a Folha de S.Paulo teve acesso, foi defendido neste ano na Universidade de Salamanca.
Com auxílio de uma ferramenta disponível na internet, a Folha identificou coincidências com parágrafos de três artigos assinados pelo advogado piauense Saul Tourinho Leal, que atua no escritório comandado pelo ex-ministro Carlos Ayres Britto, do STF.
Leia também
• Senador dá parecer favorável a Kassio no STF e diz que não se deve olhar só o currículo
• Governo Bolsonaro considera certa e fácil a aprovação de Kassio ao STF por senadores
• Contrato de escritório de advocacia ligado a Kassio foi alvo do TCU
Na semana passada, a revista Crusoé revelou e a Folha confirmou a presença de trechos semelhantes também de artigos do advogado na dissertação de mestrado de Kassio, defendida pelo juiz federal em 2015 na Universidade Autónoma de Lisboa.
Na tese de doutorado, Kassio, indicado para substituir Celso de Mello no STF, também reproduz na íntegra parágrafos da dissertação de mestrado, apresentada cinco anos antes. A introdução do trabalho acadêmico, por exemplo, é bastante semelhante. Ele também apresenta trechos coincidentes em, pelo menos, três capítulos.
No universo acadêmico, a prática de apresentar total ou parcialmente textos já publicados sem citar os trabalhos anteriores é conhecida como autoplágio. A medida é eticamente questionável e costuma ser criticada pela comunidade universitária.
Na tese de doutorado, foram encontrados parágrafos semelhantes aos dos seguintes artigos de Saul Tourinho: "O princípio da busca da felicidade e o direito à saúde", "Direito à saúde: cidadania constitucional e reação judicial" e "Ativismo judicial: as experiências brasileira e sul-africana no combate à AIDS".
Procurado pela Folha, Kassio afirmou que os questionamentos encaminhados pela reportagem foram esclarecidos e são referentes à tese de mestrado, segundo ele base para a continuidade da pesquisa no doutorado. "Não há nova dúvida que não tenha sido esclarecida anteriormente", afirmou.
De acordo com o indicado ao STF, "o texto é uma continuidade do estudo realizado para o mestrado, que tratava de direito à saúde. No doutorado, a tese evolui para um tema mais específico, o do acesso a medicamentos de alto custo". "A própria produção quantitativa mostra o desenvolvimento do mestrado para o doutorado. Parte de 120 páginas no mestrado e salta para 499 páginas no doutorado", afirmou
Kassio explicou que o doutorado inicia no direito à saúde e, como o assunto foi tratado no mestrado, "é natural que alguns trechos sejam semelhantes". Em alguns momentos, disse ainda ele, "a reprodução na íntegra de alguns dos trechos do mestrado é necessária e lógica, afinal é uma continuidade de pesquisa".
A ferramenta identificou que, em trechos da tese de doutorado, a coincidência com artigos de Tourinho chegou a um percentual de 100%, como no seguinte parágrafo: "Afirma-se que a formulação das políticas públicas brasileiras decorre de um equilibrado processo dialético que contempla os agentes do Estado e a sociedade, muitas vezes dentro de conselhos ou comissões ligadas ao Poder Executivo".
A passagem, que faz parte do artigo "Ativismo judicial: as experiências brasileira e sul-africana no combate à AIDS", publicado em 2011, também é encontrada na tese de doutorado, com a mesma formulação. O juiz federal não faz referência ao trabalho do advogado, no rodapé da página, ao reproduzir o parágrafo em questão.
A semelhança também foi encontrada em uma passagem do artigo "Direito à saúde: cidadania constitucional e reação judicial", publicado pelo advogado também em 2011, nove anos antes da conclusão do mestrado de Kassio. No texto, o advogado afirma: "Quando o que está em discussão é o direito à saúde, o modelo brasileiro se aproxima muito mais de países como a África do Sul ou Colômbia, que enfrentam desafios semelhantes às nações que incorporaram constituições repletas de direitos sociais".
Na dissertação do juiz federal, o assunto é formulado da seguinte forma: "Quando o que está em discussão é o direito à saúde, a realidade brasileira, notadamente no que diz respeito às carências sociais, se aproxima de países como a África do Sul e Colômbia, que enfrentam desafios semelhantes às nações que incorporaram constituições repletas de direitos sociais".
Além disso, em alguns trechos da tese de doutorado, Kassio não sinalizou que faz referências a trabalhos já publicados de outros autores em cada um dos parágrafos em que os reproduz. O programa encontrou casos em que ele transcreve dois parágrafos seguidos sem referência direta ou indireta, fazendo-a apenas em parágrafos mais adiante. E ainda reproduz trechos sem a utilização de aspas, o que é exigido em trabalhos acadêmicos.
Procurado pela Folha, Tourinho disse que continua válida a manifestação que enviou à imprensa na quarta-feira (7), quando as questões abordadas diziam respeito às coincidências de seu artigo com a dissertação de mestrado de Kassio.
Na ocasião, o advogado afirmou que há anos mantém relação acadêmica com o juiz federal e negou possibilidade de plágio.
De acordo com ele, os artigos acadêmicos de sua autoria com coincidências com o texto da dissertação do indicado ao STF "são frutos de debates, discussões e troca de informações acadêmicas, que, em conjunto com Kassio Marques, constituíram um acervo doutrinário comum para ser utilizado na produção acadêmica de ambos".
Ele afirmou ainda que as ideias expostas na dissertação de Kassio são de autoria do juiz federal, "até porque temos linhas doutrinárias absolutamente divergentes, guardando em comum tão somente parte do acervo pesquisado, fruto do esforço mútuo dos autores".
Kassio passará por uma sabatina na CCJ (Comissão de Constituição e Justiça) do Senado, marcada para a semana que vem. Se aprovado, seu nome segue para apreciação do plenário, o que deve ocorrer no mesmo dia. Se for aprovado por maioria absoluta, é então nomeado pelo presidente da República.