Justiça condena delegado aposentado por ocultação de corpos durante a ditadura militar
MPF alegou que os crimes continuam sendo praticados enquanto o corpo não aparece
A juíza federal Maria Isadora Tiveron Frizão, titular da 2ª Vara Federal de Campos dos Goytacazes, condenou o delegado aposentado Cláudio Guerra a sete anos de prisão, em regime semiaberto, e mais R$ 10 mil em multas, por ocultação de corpos. Em depoimento à Comissão Nacional da Verdade (CNV), após contar a mesma história no livro “Memórias de uma guerra suja”, de 2012, ele revelou que ajudou agentes da ditadura militar (1964-1985) a incinerar corpos de vítimas de torturas em uma usina de cana-de-açúcar em Campos.
A decisão judicial foi comemorada no Ministério Público Federal (MPF), responsável pela denúncia contra Guerra, uma vez que perdurava no Judiciário o entendimento de que os crimes políticos do período estavam cobertos pela Lei da Anistia. Para tangenciar a posição, o MPF alegou que os crimes continuam sendo praticados enquanto o corpo não aparece — portanto, os acusados estão fora da Lei da Anistia, válida de setembro de 1961 a agosto de 1979 — e que a impunidade contra os agentes do regime tem sido rechaçada reiteradas vezes por tratados internacionais de direitos humanos, especialmente a Corte Interamericana de Direitos Humanos.
Ex-delegado do Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) do Espírito Santo, Guerra teve, na denúncia, o nome ligado ao desaparecimento de 12 militantes políticos, entre 1974 e 1975. As vítimas são Ana Rosa Kucinski Silva, Armando Teixeira Frutuoso, David Capistrano da Costa, Eduardo Collier Filho, Fernando Augusto Santa Cruz Oliveira, João Batista Rita, João Massena Melo, Joaquim Pires Cerveira, José Roman, Luís Inácio Maranhão Filho, Thomaz Antônio da Silva Meirelles Neto e Wilson Silva.
Leia também
• Dois militares reformados são condenados por tortura durante ditadura no Uruguai
• Grupo vai monitorar cumprimento de sugestões da Comissão da Verdade
Parte das vítimas teria passado pela Casa da Morte de Petrópolis, um aparelho montado pelo Centro de Informações do Exército (CIE), no início dos anos 1970, para interrogatório e eliminação de militantes de organizações armadas de esquerda. Guerra contou que começou a cremar os corpos nos fornos da Usina Cambahyba. Além da confissão do ex-delegado, negada mais tarde em juízo, o MPF conseguiu reunir provas de corroboração, entre as quais a confirmação de festas e outros eventos que ele citou ao mencionar a relação de confiança que manteve na época com os proprietários da usina.
Ao depor no MPF, antes da instrução criminal, Guerra disse que não se arrependia de confessar o seu envolvimento. “Não tenho nada a esconder, eu falei para os senhores antes que eu sei a responsabilidade. Eu não quero clemência. Se eu tiver que pagar por alguma coisa a mais, que eu pague”, disse aos procuradores da República. Porém, transformado em réu, alegou que não poderia ser condenado por ser alcançado pela Lei da Anistia.
Em sua decisão, a juíza Tiveron Frizão disse que é dever do Brasil "investigar e punir os atos de desaparecimento forçado perpetrados no período da ditadura militar, à luz dos tipos penais correlacionados, lastreados na Convenção Internacional para a Proteção de Todas as Pessoas contra o Desaparecimento Forçado, de 2006, na Convenção Interamericana Sobre o Desaparecimento Forçado de Pessoas, de 1994, e na obrigação de submeter à persecução penal os potenciais responsáveis por crimes de lesa-humanidade". Ela acrescentou que as consequências das ações de Guerra “macularam indelevelmente não só a dignidade dos familiares, mas toda a história de uma nação”.
A denúncia contra Guerra foi apresentada, em julho de 2019, pelo procurador da República Guilherme Garcia Virgílio, do MPF em Campos. Segundo o procurador, as ações criminosas de Guerra são graves e não devem ser toleradas em uma sociedade democrática. Para o procurador, o comportamento do réu se desviou da legalidade, “afastando princípios que devem nortear o exercício da função pública por qualquer agente do Estado, sobretudo daquele no exercício de cargos em forças de segurança pública, a que se impõe o dever de proteção a direitos e garantias constitucionais da população".
O procurador da República Eduardo Benones, que também atuou no caso, sustentou que perícia do MPF, feita nos fornos da usina, derrubou a versão apresentada por proprietários da empresa de que os corpos não entrariam na cavidade do incinerador.