EX-GOVERNO

Abin, Receita e Itamaraty: PF aponta uso de máquina do Estado em favor de Bolsonaro e familiares

Inquéritos relacionam ainda uso de estruturas da Receita Federal e do Palácio Planalto para desviar joias, monitorar adversários e disseminar fake news

O ex-presidente Jair BolsonaroO ex-presidente Jair Bolsonaro - Foto: Evaristo Sá/AFP

Investigações da Polícia Federal sobre uma estrutura paralela de monitoramento ilegal e um suposto esquema de desvio de joias indicam que o governo Bolsonaro tentou se utilizar da máquina do Estado para favorecer a si mesmo e os seus familiares.

De acordo com os inquéritos, a gestão passada mobilizou a Agência Brasileira de Inteligência (Abin), a Receita Federal, a Serpro (empresa estatal de processamento de dados do governo), o Palácio do Planalto e o Itamaraty para tentar reaver as joias, vigiar adversários e blindar o senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ) no caso das rachadinhas.

A gravação de uma reunião no Palácio do Planalto em agosto de 2020 mostra que o ex-presidente Jair Bolsonaro sugeriu falar com os chefes da Receita e do Serpro com o intuito de anular a investigação envolvendo o seu filho 01 sobre a chamada "rachadinha" (desvio de dinheiro por meio do salário de assessores).

O áudio — cujo sigilo foi derrubado nesta segunda-feira pelo ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF) — compõe o inquérito que investiga o uso da Abin para espionagem ilegal de desafetos e blindagem dos filhos.

— É o caso de conversar com o chefe da Receita — afirmou Bolsonaro. Na reunião, também estavam presentes o então diretor da Abin, Alexandre Ramagem, o então ministro do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), Augusto Heleno, e duas advogadas de Flávio Bolsonaro - Luciana Pires e Juliana Bierrenbach.

As defensoras argumentavam com o então mandatário que seria possível comprovar supostas irregularidades cometidas por auditores da Receita por meio do acesso aos sistemas do órgão.

Na visão delas, um relatório de inteligência financeira elaborado por esses servidores teria originado a investigação contra Flávio e, se comprovada as ilegalidades, poderiam anular todo o processo.

O documento em questão indicava a incompatibilidade de bens com os rendimentos de Flávio.

Em outro ponto da reunião, Bolsonaro propõe falar com o Canuto numa possível referência a Gustavo Canuto, que foi presidente da Dataprev, empresa de tecnologia da informação da Previdência, e ministro de Desenvolvimento Regional.

— Era ministro meu e foi pra lá. Sem problema nenhum. Sem problema nenhum conversar com ele. Vai ter problema nenhum conversar com o Canuto — afirmou o ex-presidente.

No mesmo encontro, o ex-chefe da Abin defende que as ações mirando os fiscais da Reeita teriam que partir "de dentro" do órgão. Ele afirma que era necessário instaurar uma "apuração administrativa".

— Para construir bem, credito que a melhor saída é de dentro da Receita, pegando sério. Com uma apuração que não tem como voltar atrás. É uma apuração administrativa que, se travar, judicializa — disse Ramagem.

Bolsonaro vem negando qualquer irregularidade. Em vídeo postado no X, Ramagem disse que gravou a reunião com o aval do ex-presidente e que não houve a ocorrência de nenhum crime no encontro.

Flávio Bolsonaro, por sua vez, afirmou, em nota, que o áudio "mostra apenas minhas advogadas comunicando as suspeitas de que um grupo agia com interesses políticos dentro da Receita Federal e com objetivo de prejudicar a mim e a minha família". "A partir dessas suspeitas, tomamos as medidas legais cabíveis", declarou ele.

Procurado, Gustavo Canuto, disse que nunca foi procurado para tratar do assunto.

— Eu não fui procurado, em nenhum momento. Eu ouvi aqui os áudios, ouvi a citação, mas em nenhum momento ninguém me procurou por isso, não — afirmou. — Não tenho muito o que falar. O fato é que a Dataprev não tinha relação nenhuma com a Receita. Quem cuida dos dados da Receita é o Serpro (Serviço Federal de Processamento de Dados), por isso acho que houve alguma confusão — completou ele.

A advogada Luciana Pires disse em nota que sua atuação no episódio se deu "de forma técnica e nos estritos limites do campo jurídico".

"Protocolamos a petição mencionada nos diálogos formalmente, nos órgãos competentes, com vista a obter informações acerca do acesso ilícito aos dados pessoais do Senador Flávio Bolsonaro e, diante do seu indeferimento, impetramos um habeas data, que era o remédio processual adequado àquela ocasião, o qual hoje se encontra sob recurso. Foi, portanto, uma reunião de cunho profissional na qual agi de acordo com as normas que regem a minha profissão", afirmou ele.

Já a advogada Juliana Bierrenbach afirmou que foi à reunião para "denunciar uma organização criminosa, não pedir benefício".

A sugestão de fazer uma ofensiva junto à Receita e ao Serpro se soma a outras tentativas de Bolsonaro de acionar a máquina pública para atender a interesses dele e dos seus aliados, segundo as investigações.

No caso do monitoramento ilegal feito pela Abin, pelo menos dez servidores cedidos ao órgão usaram ferramentas pagas com dinheiro público para espionar e produzir dossiês contra ministros do Supremo Tribunal Federal, parlamentares, jornalistas e outras pessoas consideradas adversárias do governo, segundo a PF.

Boa parte deles integrava o CIN (Centro de Inteligência Nacional), criado na Abin por um decreto assinado por Bolsonaro em 2020. Entre os sistemas utilizados estava o FirstMile, que rastreia a localização dos alvos e cujo uso irregular foi revelado pelo GLOBO.

Caso das joias
Em relação à apropriação irregular das joias, pelo menos cinco servidores da Ajudância de Ordens da Presidência, o ex-chefe do Gabinete Adjunto de Documentação Histórica (GDAH), o ex-chefe da Receita Federal e uma diplomata do Itamaraty foram mobilizados para tentar reaver um kit retido no aeroporto de Guarulhos e transportar os outros conjuntos para fora do país.

Parte dos presentes — duas esculturas douradas de barco e árvore — embarcou em um voo da FAB em 30 de dezembro de 2022, quando Bolsonaro viajou aos Estados Unidos para não transmitir a faixa presidencial a Luiz Inácio Lula da Silva.

No dia anterior, em uma mensagem interceptada pela PF, o tenente-coronel Mauro Cid — então chefe da Ajudância de Ordens — perguntou a Bolsonaro se ele pretendia “trazer a árvore e o barco”? O ex-presidente respondeu, mas apagou a mensagem. “Sim, senhor”, registrou Cid, no fim.

A comitiva presidencial aterrissaria em Orlando, e Cid precisava levar a bagagem para Miami, a 380 quilômetros, onde estão os maiores centros de compra e venda de joias dos Estados Unidos.

Por isso, ele acionou uma diplomata que havia sido assessora da primeira-dama Michelle Bolsonaro para ver se ela poderia levar a mala — o que não foi feito devido a trâmites burocráticos. “Vocês não têm um motorista para fazer isso. Putz, pessoal do Itamaraty é enroladinho, hein”, reclamou Cid.

Os quatro kits de presentes avaliados em R$ 6,8 milhões foram dados ao governo brasileiro em viagens oficiais a Arábia Saudita e Bahrein entre 2019 e 2021.

Um ajudante de ordens foi em voo da FAB tentar liberar as joias retidas pela Receita Federal em Guarulhos, sem sucesso. O ex-presidente ainda tratou dos itens apreendidos com o então chefe da Receita, Julio Vieira Gomes, que tentou achar uma brecha junto aos seus subordinados para reaver os produtos, também sem êxito.

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