Ministério de Damares tenta emplacar garimpeiros e pecuaristas como povos tradicionais
Sugestão foi proposta para debate, mas iniciativa desencadeou críticas e câmara técnica de conselho retirou de pauta
A ideia de classificar garimpeiros e pecuaristas como povos tradicionais foi cogitada pelo governo. Uma ata de reunião do Conselho Nacional dos Povos e Comunidades Tradicionais (CNPCT), distribuída nesta terça-feira (7), chamou a atenção por ter, entre os tópicos, a composição de uma câmara técnica para discutir a proposta. O encaminhando foi feito pela Secretaria Nacional de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, pasta ligada ao Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, da ministra Damares Alves. Integrantes do conselho discordaram e solicitaram à pasta que o tema fosse retirado do documento. Ativistas, especialistas e internautas criticaram a possibilidade de grupos que estão no centro do debate ambiental serem tratados como indígenas, quilombolas, caboclos e ribeirinhos.
Para o advogado Diogo Cabral, da Federação dos Trabalhadores Rurais e Agricultores Familiares do Estado do Maranhão (Fetaema), a iniciativa é uma tentativa do governo federal de legitimar a ação de grupos que agem na ilegalidade.
— Trata-se de mais uma tentativa do governo federal de legalizar atividades consideradas ilegais em nosso ordenamento jurídico. Há várias frentes formadas por parlamentares e prefeitos que vislumbram transformar o garimpo ilegal em atividade lícita — disse Diogo. — O governo federal tentou pautar o reconhecimento de garimpeiros e pecuaristas como povos e comunidades tradicionais, nos moldes estabelecidos pelo Decreto 6040/2007. Tal medida se revela absurda e ilegal. Nas diversas regiões da Amazônia brasileira, garimpeiros têm destruído extensões de nossa floresta e atacado povos indígenas, comunidades quilombolas, ribeirinhos. O que o decreto tem como princípio é justamente a valorização e o respeito à diversidade socioambiental e cultural dos povos e comunidades tradicionais, e não a sua destruição.
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"O objetivo dessa designação é garantir representatividade de populações que habitavam esses territórios antes da perturbação causada por empreendimentos. Garimpeiros e pecuaristas são dois dos agentes que promovem essas perturbações" opinou um internauta no Twitter. "A intenção por trás disso que é um crime contra a humanidade", publicou outro.
Procurado para comentar sobre a citação específica aos dois grupos na ata da reunião, o MDH ainda não se manifestou. A reportagem entrou em contato com membros da sociedade civil do CNPCT, que afirmaram que a iniciativa de incluir os dois grupos na pauta de discussões para dar a eles status de povos tradicionais partiu do governo federal.
O GLOBO conversou por telefone, também, com o presidente do CNCPT, Carlos Alberto Pinto Santos Candidato, que é representante da Comissão Nacional de Fortalecimento das Reservas Extrativistas e Povos e Comunidades Tradicionais Extrativistas Costeiros e Marinho (Confrem). Ele explicou que a menção a garimpeiros e pecuaristas na ata foi equivocada e causou confusão. Carlos Alberto comentou que seria uma atitude "abrupta" votar a inserção das duas categorias entre os povos tradicionais, enquanto há ainda dezenas de outros grupos que solicitam reconhecimento. Segundo ele, a ideia é votar a criação de uma comissão de trabalho que possa definir as diretrizes para que novos segmentos sejam reconhecidos.
— Conseguimos retirar essa questão de tratar de dois grupos específicos, porque estamos num país onde existem dezenas de segmentos e povos tradicionais que necessitam de um processo de verificação profundo — disse Carlos Alberto.— O Conselho não pode deliberar hoje ou amanhã de forma abrupta se determinado pleito é válido para ser reconhecido ou não. Deve levar em consideração aspectos muito mais profundos da diversidade e da forma de autodefinição dos povos tradicionais e seus pares, e isso não pode ser definido numa reunião.
Ainda de acordo com ele, caso a proposta seja aprovada, será formado um grupo de trabalho da CNPCT que conversará com especialistas e com as próprias comunidades solicitantes para entender a melhor forma de traçar os critérios para que novos povos sejam admitidos ou não como PCTs.
— O que nós, quanto sociedade civil, aprovamos, e propusemos para que não fosse feito de forma abrupta, foi a criação de um Grupo de Trabalho (GT) para, ao longo do tempo, discutirmos com as comunidades, pesquisadores, antropólogos, a respeito de como seria esse processo — acrescentou. — O Conselho não deve se assoberbar e avançar sobre a discussão porque é necessário aprofundamento. Não é uma demanda específica de um segmento ou outro que vai decidir a pauta do conselho. Não foi uma iniciativa da sociedade civil e solicitamos que a menção aos grupos fosse retirada.
A Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais visa o reconhecimento e preservação dessas organizações sociais por parte do Estado. O interesse de grupos como garimpeiros e pecuaristas, entre outros, em tal reconhecimento, analisam críticos e especialistas, pode estar ligado ao fato de que o decreto estabelece, não só garantia de políticas públicas, mas acesso a territórios onde hoje há restrições às atividades de garimpo e pecuária, como a Amazônia.
— Eu vislumbro que esta proposta foi embutida na convocatória com um propósito específico: legitimar a ocupação de garimpeiros ilegais na Amazônia, em unidades de conservação — acrescentou o advogado Diogo Cabral.
Apesar de tal discussão específica sobre esses grupos ter caído por terra, há temor por parte de ativistas de que, caso garimpeiros consigam ser reconhecidos como povos tradicionais, eles consigam, por exemplo, valer-se de uma alteração recente feita na lei de ocupação de unidades de conservação a pedido da Advocacia-Geral da União (AGU) e do ICM-Bio. A mudança permite que grupos originários locais solicitem ao governo federal a permanência em áreas, inclusive de reservas ambientais, como parques nacionais.
— Era uma demanda histórica feita por vários movimentos. Mas, se você estende para garimpeiros, eles passam a poder solicitar ao governo federal concessão de uso daquelas reservas ambientais. Aí, algo que seria positivo, passa a se tornar um verdadeiro risco — concluiu o advogado.