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"O papel do general Heleno deve ser esclarecido", diz novo diretor adjunto da Abin

Nº 2 da agência, Marco Cepik defende a sindicância no programa FirstMile, evita comentar efeitos sobre a família Bolsonaro e destaca solidez do sistema brasileiro em comparação aos vizinhos

Marco Cepik, agora número 2 da AbinMarco Cepik, agora número 2 da Abin - Foto: Reprodução

O novo diretor adjunto da Agência Brasileira de Inteligência (Abin), Marco Cepik, vem do mundo acadêmico e, menos de 48 horas depois de ter sido escolhido como sucessor de Alessandro Moretti, exonerado na última terça-feira (30), ainda tenta se adaptar à sua nova realidade.

Acostumado a circular por universidades, dar palestras — no Brasil e no exterior — e pesquisar sobre temas como inteligência e democracia, Cepik faz pausas para pensar suas respostas, sobretudo quando é perguntado sobre temas como as investigações sobre a existência de uma Abin paralela no governo Bolsonaro e a possibilidade de que o caso chegue a membros da família do ex-presidente.

"Seria um prazer dar opinião como cientista político, ou cidadão, mas como diretor adjunto da Abin não posso me manifestar”, disse Cepik ao Globo, na sede da agência, em Brasília.

Consultado sobre o papel do general Augusto Heleno, ex-ministro do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), ao qual estava subordinada a Abin durante o governo Bolsonaro, numa suposta agência paralela de inteligência, o novo diretor adjunto foi taxativo: "Isso, como com qualquer outro agente público, deve ser esclarecido. Por omissão ou cometimento do ato, qual foi seu envolvimento nos atos que estão sendo investigados?”.

Cepik também defendeu a sindicância sobre a contratação do programa espião de monitoramento de celulares israelense FirstMile no governo Michel Temer, usado pelo governo Bolsonaro. "A ideia de que houve obstrução ao processo investigatório me parece inconsistente, mas se há uma preocupação tem de ser apurado”, respondeu Cepik, um estudioso da inteligência no Brasil e na América Latina.

Em sua opinião, apesar da crise em que mergulhou a agência, "os problemas da democracia brasileira ainda podem ser corrigidos com as medidas corretivas que a democracia prevê”, cenário mais favorável do que se vê, apontou o diretor adjunto da Abin, em países como Equador, “onde a própria autoridade do Estado está sendo questionada violentamente”.

A seguir, os principais trechos da entrevista:
Qual é sua expectativa sobre as investigações sobre a existência de uma Abin paralela no governo de Jair Bolsonaro? Já há indícios de que isso, de fato, ocorreu e foi usado para investigar opositores e jornalistas, entre outros?
O tempo da política e a ansiedade da cidadania para ter respostas sobre isso são um pouco diferentes dos tempos da investigação, da apuração e do juízo. Teremos de aguardar o final das investigações da Polícia Federal, o inquérito, e eventualmente a tradução disso num procedimento judicial para ter certeza. Não vou me antecipar. A Polícia Federal tem insistindo, e a sindicância, de fato, apurou, que houve utilizações irregulares, mas a gente não sabe a extensão. As condutas individuais estão sendo averiguadas. Há indícios, e para saber se esses indícios vão se comprovar ou não, teremos de aguardar os resultados dos trabalhos apuratórios, tanto da Corregedoria em sede administrativa, quanto da Justiça, do inquérito policial, e depois do eventual processo de juízo.

O que se pode confirmar até agora?
Havia pessoas operando dentro da Abin e de outros órgãos públicos, nas polícias, para avançar a agenda do presidente de maneira irregular nesses órgãos. Estamos falando do uso de ferramentas e de procedimentos na gestão Ramagem na Abin. Mas existem, também, processos na Polícia Rodoviária Federal, e na própria Polícia Federal. Tudo isso é consistente com as declarações do presidente à época, que disse não confiar no sistema de inteligência brasileiro e que tinha a inteligência dele. Esta rede de colaboradores do presidente [Bolsonaro] era informal, aparentemente, mas ela se manifestou em relatórios, e algumas ações que agora estão vindo à luz. Existe uma preocupação legítima da cidadania quanto a isso. Espero que o resultado das apurações comprove ou não essa hipótese investigativa, e que os fatos e as condutas dos indivíduos sejam apurados e que eles respondam por isso.

Essa rede de colaboradores informal incluiria as Forças Armadas?
Na CPMI do 8 de janeiro foram identificadas uma série de manifestações pró intervenção que envolviam também elementos das Forças Armadas. O quanto isso era tolerado, institucionalizado ou do conhecimento dos comandos é algo que deve ser investigado. Em relação à Abin, a CPMI demonstrou que a Abin cumpriu sua função legal e constitucional de alertar os riscos, monitorar e chamar a atenção para a possibilidade de que aqueles atos se consumassem. É sobre isso que posso falar. Sobre a Polícia Federal, o Exército, ou outros órgãos citados no relatório da CPMI não posso me manifestar.

O senhor reconheceu que a Abin cometeu falhas no 8 de janeiro…
Gostaria de esclarecer isso. Não houve uma falha tática, os alertas foram emitidos, a situação estava sendo monitorada, os relatórios encaminhados à CPMI foram muito conclusivos em relação ao fato de que Abin tinha conhecimento e alertou as autoridades. Em função da flexibilização dos procedimentos de difusão dos relatórios de inteligência, há uma falha que chamo de estratégica, que tem a ver com como você coordena as informações, como chegam e se chegam aos tomadores de decisão no tempo correto. Quando falamos em falhas de inteligência em outros países, desde o ataque a Pearl Harbour nos Estados Unidos até a Guerra de Yom Kipur, você tem de identificar se é uma falha de obtenção da informação, análise ou uso da informação. Acho que no 8 de janeiro houve uma falha estratégica no uso da informação de inteligência para prevenção.

Nos últimos dias falou-se muito sobre a participação do general Augusto Heleno na Abin paralela. Heleno deve ser alvo de uma investigação?
Não posso me manifestar quanto ao quotidiano administrativo do comportamento do general Heleno, que era o ministro chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI). O fato é que a Abin estava, naquele momento, subordinada à estrutura do GSI e, portanto, havia uma relação de autoridade entre o ministro e o diretor da Abin, Ramagem. Ele [Heleno] pode dizer que não esteve envolvido com o FirstMile, ou com a decisão disso ou daquilo, mas ele era o ministro chefe e essas dúvidas da sociedade devem ser esclarecidas. Qual era o papel dele? Isso, como seria com qualquer agente público, deve ser esclarecido. Por omissão ou cometimento do ato, qual foi seu envolvimento nos atos que estão sendo investigados?

Qual é sua expectava sobre a sindicância sobre o programa israelense FirstMile?
Se espera que a investigação apure qual foi a legitimidade dos atos que foram monitorados, dos telefones que foram monitorados, sua quantidade exata, e que se separe claramente o que era um uso que à época era amparado por um parecer da Advocacia Geral da União daquilo que configura claramente desvio de finalidade. Teremos a exata dimensão do dano causado para a democracia. Não é confortável para a cidadania saber que um órgão pode usar um sistema comprado para fazer uma coisa, para fazer outra. Quais números [foram espiados], com que impacto, com que justificativas, para que? A investigação tem de avançar. Não posso fazer ilações sobre uma investigação que está em curso, confio nas instituições e no processo apuratórios. Todos na Abin somos os principais interessados em que tudo seja esclarecido o mais rapidamente possível. A ideia de que houve obstrução ao processo investigatório me parece inconsistente, mas se há uma preocupação tem de ser apurado. Estou ocupando o cargo de diretor adjunto da agência há menos de 48 horas. Posso responder sobre tudo o que fiz nas últimas 48 horas.

Finalmente, a limpeza na Abin foi feita...
A Abin é uma agência civil, a maior parte dos servidores ingressou nos últimos concursos públicos. O que você teve foi a subordinação durante alguns anos ao GSI, que sim estava bastante militarizado, e, assim, o vínculo direto de assessoramento ao presidente era mediado por essa estrutura. A transferência da Abin para a Casa Civil era uma necessidade. Os funcionários da Abin são civis, técnicos, concursados, e agora têm a responsabilidade de aperfeiçoar os processos para o assessoramento presidencial. Não há que se falar de desmilitarização da Abin. As novas diretorias são pessoas que construíram as novas prioridades e a reestruturação de processos internos na agência. A maior parte dos cargos foram assumidos por servidores, com compromisso com o serviço público. É a retomada de um processo de profissionalização da Abin, contínuo desde a legislação de 1999, que sofreu um baque no governo passado. Essa é minha opinião pessoal, e respondo por ela. Isso aconteceu num contexto de um governo que manifestava publicamente desapreço pelos processos, as burocracias, pelas regras estabelecidas. Isso indignou os profissionais da Abin. Os servidores querem investigação, controle externo, legislação, que a Abin possa cumprir sua atribuições legais.

A família Bolsonaro está preocupada com as investigações…
Não sei, seria um prazer dar opinião como cientista político, ou cidadão, mas como diretor adjunto da Abin não posso me manifestar.

O senhor é especialista em inteligência e democracia, que desafios tem agora como diretor adjunto de uma agência que atravessa uma crise delicada?
Quem me convidou sabe o que penso porque escrevo sobre isso há 20 anos. No meu último trabalho escrevi sobre a necessidade do aperfeiçoamento do controle externo. O sistema brasileiro de inteligência se expandiu durante a democracia, principalmente a partir de 2002, mas o sistema de controle externo não se expandiu com a mesma robustez. Essa é a principal defasagem que temos. Pra se manter rígido, o sistema de inteligência precisa do controle externo. As mudanças estruturais na Abin precisam agora ser complementadas com algumas ações externas à Abin, e a Abin terá protagonismo no diálogo com as autoridades competentes no Parlamento e no Judiciário, é o que estamos chamando de aperfeiçoamento do marco legal e do controle judicial. O marco legal que temos hoje é um pouco vago demais, e precisa ser claro na separação do que é atividade de inteligência em termos de produção e conhecimento, e o que são aqueles atos operacionais que você precisa realizar para conseguir produzir o conhecimento. Isso se aplica em situações delicadas, como a negação de um dado de inteligência por interesse de um serviço de inteligência estrangeiro, ou de uma organização criminal. Quando você não pode mandar um ofício e solicitar o dado que você precisa para produzir conhecimento, qual é o limite de atuação dos órgãos de inteligência? Por isso defendemos a criação de uma vara judicial para autorização de operações, e, principalmente, uma alteração na lei de 1999, para esclarecer esses aspectos.

Como se insere a crise da Abin no contexto regional?
É uma discussão importante, porque existem debates sobre o futuro da inteligência, por exemplo, na Argentina, com o novo governo [de Milei], no Equador. Os sistemas de inteligência na América do Sul, algo que pesquisei muito, não têm o grau de profissionalização que houve no Brasil, nem a estabilidade do marco legal. Quando se fala em aperfeiçoar o marco legal, averiguar desvios de função, estamos falando de situações corretivas, numa situação que, de modo geral, evoluiu positivamente nos últimos 20 anos. Em outros países a coisa foi mais truncada. Na Colômbia o serviço foi extinto, e criaram um novo serviço. Na Argentina, a Agência Federal de Inteligência está sob intervenção há cinco anos. No Peru há uma instabilidade muito grande. Na América Latina, a atividade de inteligência tem déficits democráticos importantes. Esses déficits democráticos, no Brasil, são relativamente mais manejáveis nessas crises. Os problemas da democracia brasileira ainda podem ser corrigidos com as medidas corretivas que a democracia prevê. Hoje a situação no Equador é dramática, porque a própria autoridade do Estado está sendo questionada violentamente.

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