Para especialistas, politização das Forças Armadas e promiscuidade com governo geram crise inédita
Ao deixar o cargo, Azevedo destacou em nota ter "preservado as Forças Armadas como instituições de Estado"
A politização das Forças Armadas nos últimos anos e sua ampla participação no governo de Jair Bolsonaro é apontada por especialistas como um dos fatores da crise inédita na redemocratização que se instaurou após a demissão do general Fernando Azevedo Silva do Ministério da Defesa nesta segunda-feira (29).
Ao deixar o cargo, Azevedo destacou em nota ter "preservado as Forças Armadas como instituições de Estado".
Segundo relatos feitos ao jornal Folha de S.Paulo, a saída é resultado do desgaste diante da negativa do então ministro em usar os militares contra medidas de lockdown adotadas por governadores para frear a pandemia e também na recusa em trocar o comando do Exército.
Nesta terça-feira (30), os comandantes do Exército, Edson Leal Pujol, da Marinha, Ilques Barbosa, e da Aeronáutica, Antônio Carlos Bermudez, pediram renúncia conjunta por discordar do presidente da República.
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Contrariado pelo movimento, que circulou na noite de segunda, o novo ministro da Defesa, Walter Braga Netto, participou de uma tensa reunião na qual anunciou que eles estariam demitidos por ordem de Bolsonaro.
Estudioso da área, o cientista político João Roberto Martins Filho, professor titular sênior da Ufscar (Universidade Federal de São Carlos), afirma que, ao demitir Azevedo, Bolsonaro rompeu um acordo tácito de não interferir na administração direta das Forças, ultrapassando assim um limite.
"Ele [Bolsonaro] sabia que demitindo o ministro, por uma questão de praxe, eles iriam oferecer os cargos", diz o especialista, acrescentando que a mudança dos comandos "está se configurando um conflito político-militar inédito desde a redemocratização".
"Parece inacreditável que o presidente insista num conflito tão explícito com as Forças Armadas. Por outro lado, nunca podemos esquecer que as Forças Armadas entraram nessa situação por vontade própria."
Martins Filho afirma que, apesar de a fala de Azevedo em defesa do papel institucional das Forças Armadas ser bem-vinda, ela demonstra uma mudança de posição, visto que o próprio Azevedo acompanhou Bolsonaro num sobrevoo à Praça dos Três Poderes para apoiar uma manifestação contra o Congresso e o Supremo Tribunal Federal, em maio de 2020.
"Por mais repercussão que tenha tido na imprensa essa frase, ela é contraditória com outras questões que pesam muito. São instituições de Estado, mas liga a TV e está o Bolsonaro com três generais do lado dele."
"[As Forças Armadas] tiveram um incêndio, porque associaram a imagem deles ao Bolsonaro de forma muito clara, e agora querem apagar com um regador, dizendo que as Forças Armadas tratam bem essa questão dentro dos quartéis. Isso chega muito menos para a população do que essa associação mais ampla e mais nociva", completa.
Presidente da Adeb (Associação Brasileira de Estudos da Defesa), Eduardo Munhoz Svartman acrescenta que o tuíte do ex-comandante do Exército, general Eduardo Villas Bôas, na véspera de um julgamento no STF que poderia impedir a prisão do ex-presidente Lula, em 2018, marcou a volta da influência política dos militares.
Diante da deterioração da avaliação do governo, o professor da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul) diz que Bolsonaro tentou usar o apoio militar como uma cartada, mas que seu apoio não é absoluto.
"As Forças Armadas estão divididas. Há figuras de apoio ao governo nas Forças Armadas, sim, mas há também oficiais da ativa muito preocupados com esse processo de instabilidade política e incitação a revoltas das polícias e de politização das Forças Armadas."
Svartman acrescenta que a declaração de Azevedo é um recado de que as Forças não devem ser mobilizadas para o jogo político. Apesar disso, ele não vê na escolha de Braga Netto um sinal de mudança da participação no governo.
"Parece que vai haver uma barganha política aí, o que também não é desejável. Mesmo que os atuais ou novos comandantes digam que as Forças Armadas não devem ser uma força pretoriana a executar os desejos do governo de plantão, isso não deveria ser dito por eles. Isso tem que ser dito por todos nós", diz.
Carlos Fico, professor de história da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) que pesquisa o regime militar e as Forças Armadas, diz que a manifestação de Azevedo é "expressão da fragilidade da democracia brasileira que nunca conseguiu estabelecer a proeminência do poder civil".
"Se ele precisa se esforçar para fazer o que deve é porque, evidentemente, há ameaças contra esse papel institucional", afirma. Ele destaca ainda que a ampla participação de militares no governo já demonstra que as Forças Armadas estão politizadas.
Pesquisador e professor do programa de pós-graduação em Ciências Sociais da PUC-Rio, o cientista político Eduardo Raposo, que também estuda militares, destaca a declaração do ex-ministro como um sinal de resistência e respaldo ao Exército.
"Devem estar sabendo que entrar nessa de virar um Exército de governo é entrar num contexto muito complexo e contagioso. É esse que é o significado dessa frase", diz.
Já a troca dos comandos das três Forças tem uma mensagem ambígua, avalia ele.
"Parece que o governo se antecipou em substituí-los para não parecer que foram os comandantes militares que sairiam em solidariedade aos generais Fernando Azevedo e Edson Pujol, que estavam em rota de colisão com o Planalto."
Para Fico, o significado é outro. "A crise militar que estamos vivendo foi contratada pelas próprias Forças Armadas quando aceitaram essa promiscuidade entre militares e o governo de extrema direita de Bolsonaro."
Svartman avalia que a saída conjunta tem um impacto político e também nos quartéis, ao sinalizar a desaprovação quanto ao emprego das Forças em qualquer aventura antidemocrática.
"O problema é que agora o novo ministro deverá preencher essas funções entre o restrito grupo de oficiais generais de quatro estrelas. Temos que ver com muita atenção qual a posição dos novos comandantes."
Apesar das mudanças, Fico diz não acreditar em um apoio a iniciativas radicais citadas pelo presidente, como decretação de estado de sítio e estado de defesa, ou uma mudança na ação do Exército.
"É difícil que haja uma mudança radical no sentido do encaminhamento, do comportamento das Forças Armadas e do Exército. O fato de o Bolsonaro afastar o ministro da Defesa e eventualmente o atual comandante é negativo. Tudo que a gente está vivendo é bastante negativo. Agora não dá para antever o que vai acontecer realmente", finaliza.
Raposo concorda. "Não acho que o quadro seja de ruptura, mas de uma queda de braço entre o governo, as Forças Armadas, o centrão e a ala ideológica. É um jogo de tensões, de xadrez. Não é ruptura, mas para ver quem vai compor e conseguir se impor dentro desse quadro complexo."
Já Martins Filho vê sinais de uma possível operação de desembarque dos militares. "Bolsonaro pode ter ganho no momento, mas a longo prazo, acho que isso vai criar problema para ele."