Plano de Milei na Argentina, dolarização no Panamá tem protagonismo dos bancos e desafios sociais
País nunca teve um Banco Central e 'convive' com duas moedas nas ruas; ao mesmo tempo em que índices de crescimento são invejáveis, parte da população segue à margem
Em meio às propostas do agora empossado presidente da Argentina, Javier Milei, sobre a dolarização da economia, passou-se a olhar com mais atenção para os exemplos de países que seguiram por esse caminho. Hoje são 11 nações e territórios ultramarinos que usam a moeda americana: seja por questões financeiras, como o Equador, por acordos firmados pela ONU, como o Timor-Leste, ou aqueles que jamais tiveram outra moeda de fato, como o Panamá.
Desde a independência panamenha, em 1903, o dólar é usado em transações locais, política oficializada no ano seguinte pelo Acordo Taft. Vale destacar que até dezembro de 1999 o Canal do Panamá foi administrado total ou parcialmente pelos Estados Unidos, e havia uma grande quantidade de cidadãos e investimentos americanos.
Com isso, o Panamá não tem um Banco Central, instituição que Javier Milei também prometeu pôr fim durante a campanha. O fluxo de dólares em circulação na prática é controlado pelo amplo sistema bancário (são 66 bancos em operação), que pode reduzir ou aumentar a quantidade de moeda. Uma ferramenta clássica em tempos difíceis, a impressão de dinheiro, não funciona ali.
Esse engessamento causou alguns problemas na fase mais aguda da crise financeira internacional ligada à Covid-19. Muitos bancos migraram seus investimentos para portos mais seguros, especialmente os títulos do Tesouro dos EUA, provocando um aperto na concessão de crédito aos panamenhos. Às autoridades restaram ações como benefícios sociais, pagamento de ajuda a famílias em dificuldade e redução de preços de insumos básicos.
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De acordo com o Banco Mundial, neste período mais crítico da pandemia, o país teve queda de 17,7% do PIB, resultado da ligação estreita entre o setor financeiro e a economia local. Por outro lado, 2021 e 2022 tiveram crescimentos impressionantes, de 15,8% e 10,8%, respectivamente.
Os números de 2023 devem ser bem mais tímidos, em torno de 2%, mas por razões internas: o fechamento de uma mina de cobre, ordenado pela Justiça local depois de semanas de protestos, bloqueios e greves pelo país. Segundo estimativas, a mina, de propriedade de uma empresa canadense, era responsável por 5% do PIB do Panamá.
E o que significa a dolarização no dia a dia? A reportagem do GLOBO esteve na Cidade do Panamá e se deparou com um país que é regido pelo dólar, mas que tem suas peculiaridades financeiras e sociais.
A começar pelo fato de que a moeda americana não é a única: ela convive com o balboa, presente na economia na forma de moedas de metal, e que estampa alguns dos preços no comércio, setor de serviços e tarifas públicas. Ela está oficialmente atrelada ao dólar americano desde 1904, ou seja, 1 balboa sempre será US$ 1. Houve uma breve tentativa de usar notas de balboa, mas que durou apenas sete dias, em 1941.
Para alguém que visita o país com orçamento em outra moeda, como o real ou o peso argentino, o velho ditado “quem converte não se diverte” pode ser adequado caso a pessoa queira conhecer pontos turísticos ou mesmo sair do aeroporto. Um táxi até a Cidade do Panamá custa em média US$ 30 (R$ 147.80). Um prato em um restaurante sem pompa pode sair pelo mesmo valor, e quem quiser se aventurar em locais mais exclusivos, como o Maito, escolhido o 100º melhor restaurante do mundo em 2023, pode deixar bem mais do que US$ 100 (R$ 493) pela refeição, pouco menos de um terço do salário mínimo local.
Ao serem questionados sobre as duas moedas locais, alguns panamenhos riram, procuraram em seus bolsos uma moeda de um balboa, parecida com as de real ou euro. Por vezes são emitidas edições comemorativas, como na ocasião do centenário da independência, e essas moedas são encontradas por algumas centenas de dólares na internet. As moedas do cotidiano e as especiais são produzidas pela Casa da Moeda do Canadá ou por empresas privadas.
Apesar do apelo de riqueza que uma primeira impressão da Cidade do Panamá possa passar, com prédios residenciais de luxo e carros do último tipo, nem todos se beneficiam do crescimento econômico dolarizado. Mesmo com uma queda expressiva da pobreza nos anos 1990, quando a taxa beirava os 40%, 13,4% dos panamenhos não conseguem o suficiente para atender suas necessidades básicas. Durante a pandemia, o índice passou de 14%.
A pobreza, apontam dados do Banco Mundial, está concentrada nas áreas rurais, onde mais de 31% dos panamenhos vivem. Repetindo um velho enredo da América Latina, as populações indígenas são as mais afetadas — segundo números da ONG Borgen Project, 90% delas não têm como garantir o sustento de suas famílias.
O jornalista viajou ao Panamá a convite de CRDF Global, organização sem fins lucrativos parcialmente financiada pelo Congresso dos EUA, e do Departamento de Estado dos EUA