Logo Folha de Pernambuco

Fake news

Projeto de lei das fake news pode levar a perseguição política, diz pesquisadora

Ela afima que a ideia de fornecer documentos é bem intencionada, mas que são medidas com muitos efeitos colaterais

Fake NewsFake News - Foto: Pixabay

O projeto de lei sobre fake news que deve ser discutido e votado nesta quinta-feira (25) no plenário do Senado prevê medidas que exigirão coleta maciça de dados dos cidadãos e podem levar a perseguição política, criminalização de movimentos sociais e violação de sigilo de fontes jornalísticas.

Essa é a advertência de Mariana Valente, diretora do Internet Lab e professora de direito e tecnologia do Insper.

Para ela, medidas como a exigência de documentos de identificação para abrir contas em redes sociais e guarda de registros de reencaminhamentos de mensagens pelo WhatsApp representam enorme ameaça à privacidade. Há mais de 100 emendas ao projeto, apresentado pelo senador Alessandro Vieira (Cidadania-SE) e relatado por Angelo Coronel (PSD-BA).

Ainda não se sabe qual será o texto final do relatório de Coronel. Mas, segundo apurou a reportagem, o texto deve manter a rastreabilidade de mensagens no WhatsApp e a exigência de identificação para abrir contas em redes sociais.

PERGUNTA - Qual é a sua avaliação sobre os textos do projeto de lei das fake news?

MARIANA VALENTE - O que mais me preocupa são os riscos à privacidade. Por exemplo, a determinação de que serviços de mensagens [como WhatsApp] guardem os registros da cadeia de reencaminhamentos até sua origem e esses registros podem ser requisitados por meio de ordem judicial.

Isso significa que o WhatsApp terá de guardar uma quantidade enorme de mensagens, de dados sobre cidadãos. Não irão guardar só os registros das mensagens que tiveram muito encaminhamentos, as que viralizam, terão de guardar todas.

Tecnicamente é viável, mas será possível saber com quem todo mundo está falando em conversas privadas. Por exemplo, alguém faz uma piada em um grupo de amigos, privadamente, e a mensagem, tirada do contexto, é reencaminhada, vista como ameaça, e podem rastreá-la até essa pessoa.

Isso pode ser usado para perseguir politicamente. Essa medida também ameaça sigilo das fontes jornalísticas -sob pedido judicial, rastrear de onde veio determinada mensagem encaminhada por um jornalista, por exemplo.

Hoje, pelo Marco Civil da Internet, as empresas só precisam guardar os logs de acesso -quando um IP entrou e saiu do WhatsApp, por exemplo.

Agora, vão ter de guardar todos os lugares por onde passou uma mensagem. Isso vai gerar uma coleta maciça de dados dos cidadãos, o que pode ser usado para perseguição política, criminalização de movimentos sociais e violação de sigilo de fontes jornalísticas.

P - Os textos em discussão também preveem que as pessoas precisarão apresentar um documento de identidade para abrir uma conta em rede celular. O que acha disso?

MV - Nunca ouvi falar de um país exigir esse tipo de coisa. A ideia de fornecer documentos é bem intencionada, o objetivo de fazer com que as pessoas se responsabilizem pelos conteúdos que colocam e que saibamos que são pessoas que existem.

Mas são medidas com muitos efeitos colaterais. Uma é vetar pessoas que não têm documentos. Vamos estabelecer mais uma exclusão para elas? Muitas não querem se identificar e têm motivos para isso, desde ativistas que podem estar em risco até homossexuais em uma cidade conservadora.

Elas podem usar pseudônimos, mas precisam apresentar um documento para usar as redes sociais. Esse documento não vai ser público, mas pode ser requisitado pela Justiça, isso cria sensação de insegurança. E é um efeito colateral de medida que não necessariamente vai ser eficiente. Quem quer fraudar mesmo, vai falsificar documento.

P - Há aspectos positivos em discussão?

MV - Na última versão do projeto do senador Alessandro Vieira e dos deputados Tabata Amaral (PDT-SP) e Felipe Rigoni (PSB-ES), falava-se sobre o fato de as contas em redes sociais de agentes públicos serem contas de interesse público, e precisarem ser tratadas como tal. Isso é positivo.

P - Em entrevista ao jornal Folha de S.Paulo, o diretor-executivo da Avaaz afirma que parte das organizações da sociedade civil no Brasil integram uma "coalizão do não faça nada" e se opõem a qualquer tipo de regulamentação de fake news.

MV - Essa coalizão vem atuando de forma muito proativa, inclusive teve atuação essencial na aprovação da Lei Geral de Proteção de Dados. Ocorre que, quando o projeto de lei de fake news foi apresentado, não foi proposto de forma dialogada com as organizações. Desde que o projeto foi proposto, a coalizão tem feito tudo para mitigar danos e tem feito, sim, muitos debates proativos.

P - Para a sra., qualquer tipo de regulamentação de desinformação implica perda de liberdade de expressão ou há uma regulamentação possível?

MV - Existe um papel do Estado importante na discussão sobre o ambiente informacional e há soluções legislativas possíveis. Mas há dois problemas, de processo e de conteúdo.

Nós discutimos o Marco Civil da Internet por cinco anos. Agora, discute-se uma lei no meio de uma pandemia, num momento em que as comissões não estão funcionando, todas as discussões vão direto para o plenário e as formas de participação estão muito diminuídas. Esse momento é muito inadequado.

Em termos de conteúdo, os diagnósticos mais sofisticados apontam com muita clareza que não existe bala de prata. E há consenso cada vez maior, o ministro Luís Roberto Barroso [atual presidente do Tribunal Superior Eleitoral] até falou que é preciso regular a desinformação pelo comportamento e não pelo conteúdo.

P - Como assim?

MV - Ao se regular pelo conteúdo, entramos em uma arena difícil, determinar o que é desinformação e o que não é, o que seria um conteúdo autêntico ou inautêntico. É muito fácil quando pensamos em um número -Mariana nasceu em 1980. Está errado, nasceu em 1986.

Mas há muitas informações que ficam numa zona cinzenta e há risco muito alto de se estabelecer um conceito que acabe permitindo a censura de conteúdos legítimos. Há coisas não verificáveis, o que não significa que sejam mentira.

Quando você tem alguém julgando o que é conteúdo desinformativo, está dando um poder para alguém julgar a veracidade das coisas. Além disso, a regulamentação de conteúdo aumenta a possibilidade de manipulação política.

Então, tem surgido um consenso de que é mais efetivo e há maior legitimidade na atividade de controle de desinformação quando você olha para como os atores estão se comportando, como olhar para o disparo em massa de WhatsApp, que entrou na regulamentação do TSE.

Outra discussão relevante é a dos robôs. A intenção não é proibir os robôs, tem vários que funcionam como ajuda, mas é preciso rotulá-los. Coibir comportamento é muito mais fácil do que tentar fiscalizar conteúdo -por exemplo, determina-se que há articulação entre contas, por meio de robôs, para produzir ruído ilegítimo sobre o debate público.

Não é o que estão dizendo, mas sim que estão amplificando um tema artificialmente ou deformando o debate público. Olhar para o comportamento que simula, que distorce.

Também há consenso sobre a necessidade de um devido processo em relação a conteúdos removidos pelas plataformas, é preciso um espaço para o usuário poder contestar.

Mariana Valente, 34

É diretora do Internet Lab e professora da pós-graduação no Insper. É doutora em sociologia jurídica pela Faculdade de Direito da USP, onde também obteve seu título de mestre e graduou-se em direito. Foi pesquisadora visitante na Universidade da Califórnia (EUA), bolsista com certificado em direito alemão pela Universidade Ludwig-Maximilian, em Munique (Alemanha), e pesquisadora do programa Linkage Program, na Universidade Yale (EUA)

Veja também

Newsletter