Sob Bolsonaro, Brasil passou a importar mais da Arábia Saudita e acordo para deixar de exigir visto
Pivô da crise envolvendo joias dadas ao ex-presidente, sauditas receberam comitiva brasileira em 2019 e prometeram investir US$ 10 bilhões no país, o que não aconteceu
O governo do ex-presidente Jair Bolsonaro promoveu uma aproximação do Brasil com a monarquia da Arábia Saudita, o que impulsionou as trocas comerciais com o país do Oriente Médio nos últimos anos e trouxe a promessa de investimentos que até hoje não saíram do papel.
A família real saudita deu à comitiva brasileira duas caixas com joias em 2021: uma delas ficou com Bolsonaro, enquanto a outra, com peças avaliadas em R$ 16,5 milhões e que seriam destinadas a Michelle Bolsonaro, foi apreendida pela Receita Federal. O tratamento dado aos presentes está sob investigações da Polícia Federal e do Ministério Público Federal.
Bolsonaro visitou Riade, a capital da Arábia Saudita, em outubro de 2019. Na ocasião, foi recebido pelo rei Salman Bin Abdulaziz Al Saud e pelo príncipe regente, Mohammed bin Salman. Os dois países assinaram um acordo para que o Fundo de Investimento Público saudita aplicasse até US$ 10 bilhões em projetos no Brasil. “O governo brasileiro trabalha em conjunto com o fundo na facilitação de iniciativas, continuando a simplificação da legislação e outras ações favoráveis ao crescimento”, declarou Bolsonaro à época.
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Passados mais de quatro anos do encontro, até hoje nenhum aporte foi feito. Em 2020, a então secretária especial do Programa de Parcerias de Investimentos, Martha Seillier, apresentou a carteira de projetos do PPI para representantes do fundo saudita, mas ficou só com a promessa de que tudo seria analisado.
Bolsonaro criou, dois meses depois da viagem, um comitê interministerial para a “promoção de comércio e investimentos” entre Brasil e Arábia Saudita. Já no ano passado, a Câmara de Comércio Exterior — órgão ligado ao Ministério da Economia de Paulo Guedes — aprovou a negociação de um acordo de cooperação para facilitar investimentos sauditas.
Os seguidos gestos do governo estimularam o setor empresarial a ampliar os negócios com o país do Oriente Médio, conforme explica o consultor de comércio exterior Michel Alaby, ex-diretor da Câmara de Comércio Árabe Brasileira. As importações da Arábia Saudita bateram recorde em 2022, chegando a R$ 5,3 bilhões, enquanto as exportações no ano passado atingiram o maior volume em dez anos (R$ 2,9 bilhões). O Brasil era a 40ª nação que mais comprava dos sauditas no fim de 2018, antes de Bolsonaro assumir a Presidência. Hoje, é o 27° maior parceiro do reino.
— Normalmente, essas relações de negócio são pautadas pelo relacionamento entre os governos e depois a iniciativa privada aproveita a deixa. A Arábia Saudita depende muito do Brasil para sua segurança alimentar, importa muita carne de frango, soja, milho e açúcar — diz Alaby.
Petróleo saudita alavanca importações
A compra de fertilizantes sauditas foi uma das operações que mais tiveram alta no período de governo Bolsonaro: o valor movimentado nessas compras quase triplicou desde 2018, passando de US$ 321 milhões para US$ 867 milhões no ano passado.
O produto que o Brasil mais compra dos sauditas, porém, é o petróleo. No ano passado, foram US$ 3,2 bilhões gastos com o produto saudita, o equivalente a 60% do total desembolsado em compras do país. Os sauditas são o maior exportador de petróleo do mundo e quem mais vende para o Brasil: 32% dos barris que o país importou em 2022 vieram do reino.
Na viagem em que recebeu as joias oferecidas pela família bin Salman, o então ministro de Minas e Energia, Bento Albuquerque, teve encontro com representantes da Saudi Aramco, maior petrolífera do mundo.
O economista Adriano Pires, diretor fundador do Centro Brasileiro de Infraestrutura (CBIE), explica que o Brasil importa petróleo saudita para misturá-lo ao extraído em território nacional em suas refinarias.
— Boa parte do que se extrai no Brasil é um petróleo pesado. A Arábia Saudita tem um petróleo leve de alta qualidade, um dos melhores do mundo, então a gente precisa do produto com essas especificações para fazer gasolina e diesel em maior quantidade. O da Venezuela, por exemplo, é muito pesado, então não resolveria nosso problema — diz Pires, que vê na guerra da Rússia com a Ucrânia um fator que pode ter impulsionado ainda mais as exportações da Arábia Saudita no último ano.
Na semana passada, a Federação Única dos Petroleiros (FUP) pediu para o Ministério Público Federal apurar se há relação entre as joias dadas a Bolsonaro pela Arábia Saudita e a concessão de uma refinaria da Bahia, em 2021, para uma empresa controlada por um fundo dos Emirados Árabes Unidos. Os especialistas ouvidos pelo Globo rechaçam essa possibilidade e destacam que, apesar de ambos estarem no Oriente Médio, trata-se de países distintos e com governos independentes.
Além de ter firmado o acordo para receber investimentos que não vieram, Bolsonaro também assinou em 2019 uma carta de concórdia com o governo saudita para facilitar viagens de turistas das duas nações sem a exigência de visto. No Brasil, a Câmara dos Deputados ainda não aprovou a medida. Também no país árabe, nada mudou: brasileiros precisam de visto para viajar e o turismo só é liberado para grupos aprovados pelo reino e que seguem um roteiro pré-definido.
O consultor Michel Alaby diz não ver risco de retrocessos na relação com a Arábia Saudita sob o governo Lula 3. Apesar disso, ele afirma que mudanças de gestões historicamente têm sido um entrave para o aprofundamento de parcerias no Oriente Médio:
— O aporte do fundo de investimento saudita foi anunciado e nada aconteceu. É difícil para outros países fazerem negócios com o Brasil porque aqui não há continuidade nos projetos quando muda de um governo para outro.