STF enfrenta judicialização da Covid-19 sem ter resolvido passivo na saúde
A pandemia do novo coronavírus levou o STF (Supremo Tribunal Federal) para o centro da crise da saúde pública, área em que costuma hesitar para tomar decisões importantes. Já são 3.600 ações sobre a Covid-19 na corte, que terá de enfrentar o tema sem ter resolvidos processos relevantes na área e que estão pendentes há anos.
Distribuição de remédios de alto custo, patamares mínimos de investimentos e aplicação da lei dos planos de saúde são alguns dos temas que aguardam a decisão do Supremo. O recurso que discute o fornecimento por parte do Estado de medicamentos de alto custo sem registro na Anvisa, por exemplo, chegou ao Supremo em 2011. Até hoje, o tribunal não fixou uma tese a ser aplicada pelas outras instâncias inferiores do Judiciário sobre o tema.
O assunto é discutido em um recurso com repercussão geral, ou seja, a decisão valerá para todos os processos similares do país. Todos os ministros já votaram e a maioria concordou que o governo não tem essa obrigação. Houve divergência, porém, em relação à tese, uma vez que ela deve prever ressalvas à decisão. Os ministros entenderam que há situações excepcionais que devem ensejar a atuação do Estado, mas não definiram quais são essas hipóteses. Assim, a indefinição sobre os casos extraordinários que fugiriam à regra, dizem advogados, tem travado pedidos judiciais sobre o tema.
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Outro recurso com repercussão geral que tem impacto na gestão da saúde pública e carece de definição do STF é o que discute se o Judiciário pode intervir quando estados, município ou União deixam de aplicar recursos mínimos na saúde pública. O debate existe porque o Congresso nunca regulamentou dispositivo da Constituição que remete à lei complementar a fixação de percentuais, critérios de rateio e normas de fiscalização das verbas.
Como não há uma decisão do Supremo a respeito. A corte dá margem para juízes de primeira instância interpretarem a Constituição da forma que preferirem e, eventualmente, dar decisões que posteriormente são derrubadas, atrapalhando a gestão dos recursos públicos.
Especialistas apontam dois fatores importantes para a explosão de ações relativas à saúde nas últimas décadas. Um deles é a promulgação da Constituição de 1988, que prevê o acesso à saúde como direito de todos e dever do Estado, o que dá margem para cidadãos acionarem o Judiciário sempre que tiverem um tratamento ou remédio negados pela rede pública.
O segundo ponto é o sucesso que pacientes obtiveram nos anos 1990 ao requerer, na Justiça, medicamento para Aids, o que se espalhou para outros setores da saúde depois.
Há ao menos dez anos o CNJ (Conselho Nacional de Justiça), que é comandado pelo presidente do STF, tenta, sem sucesso, reduzir a sobrecarga de processos na área Brasil afora. Em 2010, o órgão recomendou às primeiras e segundas instâncias que criem grupos para subsidiar magistrados sobre questões técnicas, como eficácia de determinados remédios, entre outros aspectos médicos. No mesmo ano, foi criado um sistema eletrônico para acompanhar os processos da área e foi instituído o Fórum Nacional de Saúde para elaborar medidas a fim de reduzir a litigiosidade do setor.
Os números disponibilizados pelo próprio CNJ, porém, indicam que as ações não tiveram o impacto esperado: de 2008 a 2017, houve um aumento de 130% no número de processos sobre saúde, número superior aos 50% de processos novos que chegaram ao Judiciário neste período. O médico e advogado Daniel Dourado aponta que o movimento pelo uso da hidroxicloroquina é outro fator que pode sobrecarregar ainda mais a Justiça e dificultar a vida dos gestores de saúde.
O presidente Jair Bolsonaro (sem partido) tem feito campanha em favor do medicamento desde o início da pandemia, apesar de a substância não ter eficácia cientificamente comprovada. O chefe do Executivo pressionou o Ministério da Saúde até a pasta aderir a protocolo de tratamento à Covid-19 não só para casos graves, mas também para pessoas com sintomas leves da doença. O médico, porém, alerta que o movimento pode ter um efeito colateral grave em secretarias estaduais e municipais de saúde.
Ele diz que é difícil estimar o impacto financeiro da judicialização da pandemia e afirma que o valor pode não ser tão alto quanto o de decisões que envolvem tratamentos e remédios milionários, mas pondera. "A questão da cloroquina, por exemplo, vai demandar trabalho das comarcas de primeiro grau, o juiz vai perder seu tempo remunerado por nós com isso. Se houver decisão favorável, a secretaria pode recorrer e estender ainda mais o debate e, consequentemente, os custos", diz.
O ex-diretor da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) Renato Porto também diz acreditar que a judicialização da saúde somada à pandemia irá complicar ainda mais a vida dos gestores de saúde. "A judicialização vinha muito focada em remédios de alto custo e tratamentos mais caros. Acho que após a pandemia as pessoas vão perceber que tratamentos não tão caros também podem salvar vidas, porque as comorbidades estão se mostrando fator decisivo no combate à Covid-19, e isso vai pressionar o sistema público", diz.
Outra discussão que o STF ainda não tomou decisão e que pode impactar a saúde diz respeito ao teto de gastos aprovado pelo Congresso para os próximos 20 anos. Partidos de esquerda e movimentos sociais entraram no Supremo para invalidar a medida. O tema ainda não foi analisado. As entidades argumentam que a nova regra orçamentária -que limita o aumento dos gastos à inflação do ano anterior- representará uma redução nos investimentos em saúde nas próximas duas décadas.