Chambaril é carne para todos os gostos
Suculenta, a carne retirada da coxa traseira do boi é patrimônio gastrô da mesa pernambucana. Conheça a origem dessa tradição e como os chefs estão adaptando a receita explorando sua versatilidade
Se alguma vez você olhou torto para um pedaço robusto de chambaril cozido, rodeado por pirão, arroz e legumes, capaz de te deixar molinho depois de umas garfadas, sugiro reconsiderar tal julgamento. A carne mais pernambucana de todas nunca foi tão pop. Uma breve consulta aos cardápios de cozinha autoral reforça a ideia de que um ingrediente como esse, tão ligado à cultura popular popular, pode ganhar vida além das mesas tradicionais sem deixar de lado as referências afetivas.
Só não confunda versátil com facilidade em transformá-lo num recheio de ravióli ou numa espécie de croqueta chique. Trabalhar o ponto de cozimento é detalhe obrigatório nas preparações bem sucedidas. Afinal, estamos falando da coxa traseira do boi, retirada de maneira em que se tenha a carne do músculo e o osso em si - repleto de tutano - com todas as particularidades dessa região acima da canela. Um membro que, por ser indispensável na locomoção do animal, é uma das partes mais rígidas e vascularizadas do bicho. Também por isso, muitos cozinheiros atribuem ao fato de ser um dos cortes bovinos mais saborosos.
Estrutura que a chef Cláudia Luna conhece bem. Não à toa, ela é o nome na cozinha do restaurante Seu Luna, no Ipsep, na Zona Oeste do Recife, conhecido por servir a carne que se desmancha na colher há mais de 30 anos. Esse é, sem dúvida, o reduto onde a tradição de servir a proteína é ventilada para os quatro cantos do Brasil. Não há distinção de classe, gênero ou qualquer outro limitador diante de um tempero à base de cebola, coentro e cominho.
“Não digo que a gente tem um segredo, mas o cuidado de cozinhar a carne por horas numa panela comum, além de preparar o caldo com o reforço de legumes e todos os temperos juntos. Não fica nada parecido com o chamado caldo ralo que as pessoas costumam ficar de olho”, explica. De tão molinha, a carne se separa do osso durante o cozimento e só depois é montada no prato como se nada tivesse se desprendido. Assim, surge aquela aparência imponente que todo mundo lembra quando pensa no prato para dividir em família, na versão de 1,5kg. No Seu Luna saem quase 700 pedidos como esse por mês, com a chance de porção individual, para duas ou três pessoas.
A própria chef, aliás, se empolga com o surgimento de novas receitas, como meio de valorização do ingrediente. Tanto que incluiu no cardápio da casa duas versões de entradinha, sendo o chambaril refogado na manteiga com cebola, tomate e coentro, para ir à boca com pedaços de torrada, e os bolinhos - mega recheados - servidos com molho cítrico de acerola. Fora do Ipsep, suas investidas já resultaram em carne de hambúrger e arroz molhado por um ragu consistente. Em 2017, à convite do chef Alex Atala, então fascinado com o que provou no Recife, Cláudia preparou no restaurante Dalva & Dito, em São Paulo, um menu pernambucano, cujo destaque era o chamba.
Petisco: bolinho de chambaril ganha o toque cítrico do molho de acerola - Crédito: Ed Machado/Folha de Pernambuco
Chambaril ou ossobuco?
Qualquer um dos dois. A diferença está na origem da palavra e na forma como a receita é oferecida. Ossobuco é termo italiano para “buraco no osso”. Na Europa, nada do colorido dos legumes ou a fartura de um acompanhamento tão substancioso quanto o pirão engrossado com farinha. Muitas vezes, a peça se basta empanada - à milanesa -, servida com risoto ou porção de ervilha. Já pelas bandas de cá, o mesmo corte, tão próximo ao osso, é chamado de chambão, segundo o livro “História dos Sabores Pernambucanos”, da pesquisadora de gastronomia Maria Lecticia Cavalvanti.
O curioso é que chambão também se tornou sinônimo popular para carne barata e de qualidade inferior. Definição oposta ao glamour do “irmão” italiano. De acordo com o estudioso e gastrônomo Alberto Penaforte, somente no início do século 21, com a presença maciça dos mercados públicos, o chambaril passa a ser melhor comercializado e, enfim, valorizado pelos bares e restaurantes locais. “Tanto que muitas casas incorporaram o nome do prato à fachada, na intenção de atrair clientes. Antes disso, era comida associada a quem não poderia comprar algo melhor”, resume.
A tradição do cozido chegou ao Brasil pelo viés Ibérico. “Mas a gente deve considerar que a gastronomia portuguesa também recebeu influências além do seu próprio território, seja pela riqueza da cultura árabe, do norte da África e até pela tradição islâmica. E essa miscigenação favoreceu muito o uso dessas técnicas no Brasil”, comenta o secretário de Cultura do Recife, Gilberto Freyre Neto. Ele emenda que, embora o clima nordestino não seja algo favorável a receitas tão gordurosas, temperadas com bastante pimenta, típicas das culturas mais frias, o cozido passa a fazer sentido no contexto brasileiro, especialmente no Nordeste, tornando-se algo identitário, seja através da rabada, da mão de vaca e do próprio chambaril.
Embora Pernambuco seja um grande consumidor desse prato, é no Tocantins, na região Norte do Brasil, que o tal corte bovino ostenta o título de Patrimônio Cultural e Gastronômico do Estado, desde a publicação no Diário Oficial de 2017. Em tempo, também estão nessa lista a buchada e a paçoca de carne de sol, tão fáceis de encontrar nos mercados e estabelecimentos gastrô daquele Estado.
Para todos os gostos
Se há uma receita que foge do óbvio no quesito adaptação, ela está nas mãos do chef Claudemir Barros. Antes mesmo de o seu restaurante Oleiro abrir na Zona Norte do Recife, ele já experimentava utilizar o caju como carne, a batata-doce como osso e o umbu refogado no lugar do tutano. O molho é feito à base das sobras de vegetais, mais redução de shoyu, vinhos branco e tinto. De tão inusitado e surpreendentemente saboroso, a receita arrancou elogios de chefs como Rodrigo Mocotó, Rui Paula e Laurent Suaudeau. “A repercussão desse prato foi espantosa e, ao mesmo tempo, massa”, define.
Para o bar de carnes 303 Steaks, a chef Karol Nascimento trabalha uma croqueta servida como uma espécie de tapa espanhola. Por lá, também começa a ser produzido aos sábados uma paella que substitui os frutos do mar pelo chambaril desfiado com o clássico espanhol sofritto, que é uma mistura de temperos, mais o caldo da carne e o tutano cozido, e finalizado na parrilla. Já na consultoria recente para o boteco Tio Zé, no Shopping Patteo Olinda, o chef Raphael Vasconcellos pensou nos sabores de referência afetiva para montar uma panelinha de ragu de chambaril, acompanhada de pãozinho para ‘chuchar’.
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Enquanto isso, no Barchef do Shopping RioMar, o chef Hugo Prouvot reforça a ideia de hit gastronômico poderoso. Ele já preparou croqueta e, hoje, utiliza o insumo no molho bolonhesa da casa, que é um ragu cheio de pedaços da carne, além do arroz de chambaril. “Tudo isso porque é um ingrediente muito versátil e de sabor marcante, que, por conta do cozimento longo, fica delicioso e até um pouco melado graças à quantidade de colágeno”, define.
Onde comer
Seu Luna
Especialidade: cozinha nordestina
Informações: 3339.0012 | @seulunarestaurante (Instagram)
Tio Zé
Especialidade: cozinha nordestina
Informações: @tiozeboteco (Instagram)
303 Steaks
Especialidade: bar de carne
Informações: 3314.1338 | @303steaks (Instagram)
Chambaril do Júnior
Especialidade: cozinha nordestina
Informações: 3421.3180
O Pesado
Especialidade: cozinha nordestina
Informações: 3204.2344 | @opesado (Instagram)
Oleiro Cozinha Artesanal (prato vegano)
Especialidade: cozinha brasileira
Informações: 3128.1708 | @oleirocozinha (Instagram)
Barchef
Especialidade: cozinha variada
Informações: 3033.5050 | @barchef (Instagram)
Ursa Bar
Especialidade: bar e comedoria
Informações: 3204.4332 | @ursa_barecomedoria (Instagram)
Bragantino
Especialidade: cozinha portuguesa
Informações: 99421.0926
Bar do Tonhão
Especialidade: cozinha regional
Informações: 3072.2786
Cícero Restaurante
Especialidade: cozinha regional
Informações: 98563.0910