Mulheres na cozinha: a luta pelo espaço feminino na gastronomia
Presença feminina na cozinha profissional já foi criticada, mas hoje elas assumem o protagonismo no setor
Quem abre a boca para dizer que “lugar de mulher é na cozinha”, comumente tem a intenção de inferiorizar a importância feminina na sociedade. Quando empregada no contexto da gastronomia, no entanto, a máxima machista é revertida em emblema da conquista de um território profissional que por muito tempo foi dominado pelos homens.
Ao longo dos séculos, as mulheres carregaram nas costas a responsabilidade de cozinhar e servir a alimentação da família. Já na cozinha profissional a presença feminina nem sempre é vista com bons olhos e ainda enfrenta certa resistência, mesmo depois de muitos avanços. Entre os 14 restaurantes brasileiros que receberam estrelas na última edição do Guia Michelin, por exemplo, apenas um é comandado por uma mulher.
Não é de hoje que a misoginia e o machismo rondam as cozinhas. Durante um discurso, em 1890, o famoso chef francês Auguste Escoffier (1846-1935) defendeu que “o homem é mais rigoroso no seu trabalho” e “mais atento sobre os vários detalhes que são necessários para produzir um prato verdadeiramente perfeito”. Para um dos maiores nomes da gastronomia francesa moderna, as mulheres precisavam se manter afastadas das cozinhas profissionais.
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Apesar da falta de reconhecimento dos figurões da alta gastronomia, a cozinha francesa encontrou seu foco de resistência feminina com as chamadas “mères” (mães, em francês) de Lyon, no século XIX. Elas eram antigas empregadas de famílias burguesas que, sem emprego, buscaram colocação em restaurantes ou abriram seus próprios empreendimentos.
“Essas mães acabaram fazendo com que a gastronomia local se desenvolvesse. Foram pioneiras, responsáveis pelos primórdios do que viria a ser a nouvelle cuisine, já que tinha um olhar para a produção regional. A mère Brazier, a mais famosa de todas, formou outros chefs importantes, como Paul Bocuse e Roger Vergé”, explica Robson Lustosa, professor de Gastronomia da Faculdade Senac-PE.
Outra mulher que tem o seu nome merecidamente fincado no hall das estrelas da gastronomia mundial é a norte-americana Julia Child (1912-2004). Formada na renomada Le Cordou Bleu, a apresentadora e escritora despertou o interesse pela cozinha em milhares de pessoas com seu programa de TV e livros de receitas. Em 2009, sua história foi contada no filme “Julie & Julia”, com Meryl Streep e Amy Adams. Recentemente, o serviço de streaming HBO Max encomendou uma série sobre a biografia da chef.
Elas no comando
Robson aponta uma dicotomia existente no mercado gastronômico e diretamente relacionada às questões de gênero. "Quando a gente olha para os cursos de formação, o número que lidera é o de mulheres. Ao mesmo tempo, elas enfrentam uma maior dificuldade para ganhar espaço nas cozinhas profissionais”, observa.
Com competência e talento, várias mulheres vêm derrubando barreiras no cenário da gastronomia brasileira. O exemplo mais famoso é o da gaúcha Helena Rizzo, que em 2014 foi eleita a melhor chef mulher do mundo pela revista britânica Restaurant. Em São Paulo, ela é o nome por trás do Maní, restaurante com uma estrela no Guia Michelin.
À frente de projetos bem-sucedidos e com projeção midiática, chefs com atuação em Pernambuco somam os desafios atuais enfrentados pelo setor aos que sempre fizeram parte da vivência feminina em um ambiente tão masculinizado.
“Tem o preconceito e o machismo, que não vem só dos homens, mas até de outras mulheres também, fora as piadinhas de cunho sexual. Tudo isso a gente tem que driblar para sobreviver. É preciso muito jogo de cintura e paciência”, conta a chef Miau Caldas. Consultora de restaurantes como o Terraço Carvalheira e a Mooo Hamburgueria, ela rejeita o rótulo “maternal” muitas vezes atribuído às mulheres em postos de comando.
“Gosto dessa coisa de liderar e também de ensinar. Pego na mão, se for preciso, e mostro como é que se faz. Às vezes, preciso falar mais grosso. Sei coordenar uma equipe com pulso firme, mas sem desrespeitar e humilhar ninguém”, afirma.
Segundo Miau, tem sido cada vez mais comum se deparar com cozinhas majoritariamente femininas em seus trabalhos. “Hoje em dia, eu tenho formado mais equipes de mulheres. Gosto muito de trabalhar com mão de obra feminina e o mercado tem absorvido mais isso. De cinco anos para cá ,eu tenho encontrado isso mais constantemente nas consultorias e é uma coisa que me deixa muito feliz”, aponta.
Consultora do do grupo Quina do Futuro, Giovana Nacarato participou da última edição do reality “Mestre do Sabor”, da TV Globo. Com dez anos de experiência, ela acredita que ter a voz reconhecida dentro de uma cozinha ainda é um desafio para as mulheres. “Quando a liderança é feminina, o comando ainda é um pouco questionado. A gente precisa sempre estar reforçando nossa posição, papel e opinião”, analisa.
Sem negar os avanços dos últimos anos, Giovana conta que não é difícil encontrar cozinhas ainda inteiramente formadas por homens. O ambiente de trabalho pode ser um tanto quanto tóxico, demandando um esforço redobrado por parte das profissionais. “Além das dificuldades da própria cozinha, tem que trabalhar muito o emocional para conseguir lidar com alguns assédios morais e sexuais, que infelizmente ainda existem muito no nosso meio”, revela.
Para a chef Sofia Mota, que está no mercado há 15 anos, as mulheres conquistaram espaços importantes na gastronomia e não precisam provar nada a ninguém. Algo que ainda a incomoda é a manutenção de estereótipos atrelados à vivência feminina na cozinha. “Há uma visão da mulher ainda muito ligada à confeitaria. No começo da carreira, recebia muitos convites de eventos sempre com essa temática. Mas existem muitas mulheres boas na cozinha quente também. A gente consegue cozinhar como qualquer homem, para além do rótulo de doceira”, defende.