Pensadores pernambucanos dão o molho literário aos comes e bebes da gastronomia local
Publicações ajudam a entender a nossa base culinária em meio a ingredientes e hábitos típicos
“As preferências do paladar são condicionadas, nas suas expressões específicas, pelas sociedades a que pertencemos, pelas culturas de que participamos (...)”, diz um trecho do livro “Açúcar”, escrito por Gilberto Freyre, em referência à origem dos nossos costumes à mesa. Na época em que a obra foi publicada, na década de 1930, o sociólogo pernambucano já apontava a importância de se estudar o contexto de inserção da comida, na busca pela definição de uma identidade cultural.
Ao longo da vida, Freyre publicou inúmeros livros e, na maioria deles, os elementos gastronômicos estavam presentes como um objeto intelectual indispensável. Dessa temática, apresentada de várias formas no decorrer dos tempos, o médico pernambucano Josué de Castro também contribuiu para uma análise social em relação à ausência da comida. Em “Geografia da fome”, de 1946, ele encara uma problemática séria no Brasil, mapeando as cinco áreas alimentares no País. O resultado foi o declínio de mitos como o de que fome e desnutrição, tão setorizados no Nordeste, tinham relação com fatores naturais. A questão sempre envolveu política.
Dessa forma, para estudar a base alimentar de uma cultura, o pesquisador entende que um caderno antigo de receitas é tão importante quanto as etapas isoladas da preparação de um prato. O entorno conta, e ele segue criando problemas de pesquisa que nos ajudam a dizer quem somos e porquê comemos alguns pratos.
Sabores Pernambucanos
Para a pesquisadora e especialista em gastronomia, Lecticia Cavalcanti, nunca se escreveu tanto sobre culinária. Por toda parte. “Porque cozinhar dá prazer. Mas, também, pela vontade natural de conhecer um pouco mais do passado, da preocupação em documentar o caráter de sua gente”, diz, reforçando o pioneirismo de Freyre e do também nordestino Câmara Cascudo.
Nas suas publicações existe a busca pela compreensão da terra em que vivemos através do alimento. “Eça de Queiroz já dizia que ‘entre todas as manifestações culturais, a que melhor revela o gênio de uma raça é a culinária’. O livro ‘História dos Sabores Pernambucanos’ nasceu do desejo de fazer um inventário completo de nossas receitas. Buscando os sabores que são autenticamente nossos. E os que herdamos de cada uma das três culturas que nos formaram – indígena, africana e portuguesa. Identificando as alterações que sofreram com o tempo. E as razões dessas alterações”, explica a escritora.
Influência estrangeira
Na pesquisa que resultou no livro “À Francesa - A belle époque do comer e beber no Recife”, o historiador e gastrônomo Frederico Toscano revisita o século 20, quando a Capital pernambucana se deixou influenciar pelo francesismo importado da Europa, com seus hábitos e ingredientes elegantes à mesa. Na análise, que rendeu o 3º lugar na categoria Gastronomia, no prêmio Jabuti 2015, está o gosto pelo serviço ritualístico, a valorização de produtos estrangeiros e o gosto pelo comer fora de casa.
Mais recente, sua tese de doutorado abarca o período entre 1930 e 1960, quando a influência de hábitos norte-americanos se fazia presente por aqui, diante da Revolução de 1930 e da Ditadura Militar. “Quando se fala nos Estados Unidos, temos o conceito de fartura alimentar, enquanto o Nordeste é estereotipado. Então, minha ideia era falar disso e mostrar que existe fartura no Brasil, especialmente no Nordeste, e fome nos Estados Unidos”, diz o autor, que vai lançar a obra pela Cepe Editora, ainda sem data prevista.
Identidade comestível
Os dois anos de pesquisa em campo fez o jornalista e antropólogo Bruno Albertim publicar o “Nordeste: Identidade Comestível, no que ele chama de viagem pelos ‘diferentes nordestes’. “Um lugar com tempos sociais sobrepostos. Ou seja, você encontra práticas culinárias que têm mais de 500 anos de adesão social, convivendo com hábitos muito recentes da globalização. A farinha, o fabrico das cachaças, a extração do veneno da mandioca para se produzir maniçoba...”, enumera.
A pesquisa problematizou o conceito de tradição numa época em que as narrativas oficiais estão sendo revistas e questionadas. “Montanari, escritor de comida que admiro bastante, e que estudou a alimentação na Idade Média e os padrões alimentares na Europa, diz que uma ‘tradição é uma inovação bem sucedida’. Segundo Bruno, esses hábitos são narrativas oficializadas por atores sociais, que merecem o estudo.
Antropologia culinária
O pensador da comida, o antropólogo Raul Lody é nome conhecido na produção literária no Brasil. Com mais de 50 anos de carreira e mais de cem livros publicados, com boa parte dedicados à gastronomia, ele segue marcando temas de forte valor cultural. Pimenta e dendê estão entre seus vários objetos de pesquisa ligados à religiosidade afro-brasileira, por exemplo. Lançado em 2019, o “Doce Pernambuco” resgata memórias como a dos bolos ligados à civilização do açúcar. “Já que a construção de patrimônio não está apenas na boleira, mas também no próprio doce”, afirma.
Em um meio literário tão restrito, ele alcança 95% de publicação física, que corre em paralelo ao formato de e-book. Anualmente, lança pelo menos três obras no mercado. Contexto esse que se mistura aos livros de receita e de personalidades de televisão também abordando o universo culinário. “Acho que essas produções se complementam. Meus artigos sempre vêm com receitas porque você relaciona com o conceito de fazer o prato. E nisso está a origem da técnica. Enquando que a receita, em si, é um forte elemento de interação com as pessoas”, aponta.
Comedoria popular
Autora de seis títulos da série “Comedoria Popular”, a pesquisadora Ana Cláudia Frazão defende que através de seus livros ela conseguiu um mapeamento afetivo de espaços e objetos muito particulares no Recife. “Os mercados públicos são a minha paixão. Estou há cinco gerações na minha família, no bairro da Encruzilhada, de onde na infância ia todos os dias a mercados como o da Madalena , o de Pássaros e o São José. Eles são cenários íntimos da nossa cultura”, comenta.
No seu trabalho mais recente está uma série de cordel intitulada “Minha artéria, a horta”, em que cada título corresponde a uma planta, a começar pelo tradicional bredo, comum nos pratos da Páscoa. “Cada cordel vai corresponder a uma planta e eu preferi deixar distinto da série ‘Comedoria’, porque a ideia é pensar numa alimentação saudável e contemplar velhos hábitos, envolvendo, por exemplo, as pancs”, destaca.
Comunicação e gastronomia
Na linha da comunicação, a jornalista e gastrônoma Renata do Amaral lançou em 2014 a sua dissertação de mestrado (entre 2004 e 2006) intitulada “Gastronomia: prato do dia do jornalismo cultural”. Na época, o livro atendia uma carência de mercado em torno de pesquisas sobre a crítica e a crônica gastronômica, que viviam um boom produtivo em jornais e revistas, nos anos 2000, não só em Pernambuco, mas em todo as mídias no Brasil.
Passados sete anos do lançamento, Renata avalia que, hoje, a pesquisa teria um outro contexto. É que o cenário de comunicação, cada vez mais digital, vem limitando os espaços impressos para a crítica gastronômica. Em termos de produção literária, Renata acredita haver espaço para o mercado absorver novas pesquisas, enquanto ela se dedica à linha prática, e mais pessoal, da culinária.
Recorte social
A bacharel em Gastronomia, Roneide Gonzaga, especialista em Cultura pernambucana, sempre atuou pesquisando expressões artísticas e alimentares, entre elas o milho nas músicas de Luiz Gonzaga e a cozinha pernambucana na literatura de Ascenso Ferreira.
No Mestrado, ela focou no estudo “Lugar de mulher é na cozinha: representações sociais sobre as mulheres no mercado de trabalho gastronômico”. Nele, há assuntos como divisão sexual do trabalho; tecnologias domésticas, práticas alimentares e divisão de tarefas domésticas; o processo de profissionalização da gastronomia - e aqui foco no surgimento das escolas culinárias e a inserção da mulher nesse processo de profissionalização. A ideia é transformar essa pesquisa em livro, de olho na escassez do tema no recorte regional. “Espero que a publicação contribua não apenas academicamente, mas nos campos prático e profissional. O mercado vem mudando, as minorias estão tendo voz através das redes sociais e isso repercute demais na nossa vida offline também. A cozinha profissional ainda é um local muito machista e patriarcal, mas temos muitos profissionais na luta para um trabalho mais humanizado e compartilhado”, conclui.
Livros:
História dos Sabores
Pernambucanos
Editora: Fundação Gilberto Freyre
Situação: disponível na Fundação Gilberto Freyre
Nordeste: Identidade Comestível
Editora: Massangana e Fundação Joaquim Nabuco
Situação: venda on-line
À Francesa
Editora: Cepe
Situação: disponível em e-book
Doce Pernambuco
Editora: Cepe
Situação: loja física e on-line
Série Comedoria Popular
Editora: a própria autora
Situação: loja física e on-line
Gastronomia: Prato do dia do
jornalismo cultural
Editora: UFPE
Download: https://bit.ly/3g3X4RP