Antonio Nóbrega prepara espetáculo repleto de poesia para o abre do Carnaval do Recife

Multiartista pernambucano ficará à frente, este ano, da abertura oficial do Carnaval do Recife, no Marco Zero

Artista pernambucano Antonio Nóbrega - Rafael Furtado/Folha de Pernambuco

O papel rabiscado de perguntas foi discretamente guardado, porque não cabiam formalidades e protocolos no ambiente, tampouco espaço para delongas elaboradas. Um abraço, alguns passos até o hall e lá estava Antonio Nóbrega, faceiro e "liberto como o vento", tal qual os poetas que ele cantou em "Rima" (2019), tal qual ele próprio se faz como brincante da música brasileira, da dança, do teatro e do 'universo do circo, da criança e da cultura popular', elementos que serão temas do Carnaval do Recife este ano, do qual, na sexta-feira 21 de fevereiro, o multiartista pernambucano fica à frente do espetáculo de abertura no Marco Zero, Bairro do Recife.

De volta à capital pernambucana para os ensaios - iniciados em novembro, ainda em São Paulo, onde mora - é no bairro dos Aflitos, na casa de sua irmã, que ele se aconchega quando está por aqui em sua terra, chão que ele leva pelas andanças e para onde, de quando em vez, retorna para desbravar importâncias de entrelaçamentos indissociáveis entre arte e realidade. "Vamos privilegiar (no espetáculo) as linguagens da música (cantada e instrumental) e da dança, com cenografia videográfica e alinhamento de um discurso que fale um pouco dentro da nossa realidade cultural e traduza, no espetáculo, o momento Brasil, que é de apreensão, de um certo temor", adianta o impávido multiartista recifense, engajado em seu papel na arte desde o Armorial de Ariano Suassuna, ocasião em que foi introduzido à música brasileira de raízes populares e a um outro lado de manifestações cujo protagonismo cabia ao povo.

Acompanhado de circenses, bailarinos e músicos, o espetáculo, inédito, ganhou montagem exclusiva para o Carnaval do Recife e contará com a participação de artistas locais e do Instituto Brincante (SP). Entre eles, Rosane Almeida e Maria Eugênia Almeida, a Tita, respectivamente sua esposa e filha. A primeira, inclusive, está à frente da direção e assistência da vertente do circo, na apresentação, ocasião em que as tradicionais sombrinhas do frevo pernambucano, adaptadas, vão se transformar em malabares.

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"Do espaço Cia Brincante de Circo (PE), pegamos cinco integrantes, e também teremos passistas. Era um desejo muito grande meu, vê-los fazendo malabares com as sombrinhas", conta Rosane. Já Nóbrega, além de atuar, está à frente da concepção e direção do espetáculo, dividindo repertório musical com composições do também poeta pernambucano e parceiro de longa data, Wilson Freire.

"É por meio das canções que me identifico com sentimentos e realidades, e apesar do tempo nervoso para montar a apresentação - o primeiro ensaio fizemos uma semana antes do Natal e retornamos em janeiro - a garra e a vontade do artista pernambucano, talvez instigado pela aridez do momento na cultura, me deixa muito satisfeito. Mesmo que sempre caiba à arte um lugarzinho para se evoluir, vamos chegar com o que a gente se propôs a realizar", conta.

Da dança, da música e do teatro, Antonio Nóbrega é brincante, inclusive, no trato com o mundo, quando endossa em meio ao imaginário simbólico que permeia a sua poesia rimada feita em sextilhas, emboladas e galopes, as desigualdades e incertezas Brasil afora. "Quem Mandou Matar Marielle?" (Rima, 2019) é um bom exemplo - alegre e melancólico, é bem verdade, mas irrepreensível, denotando a preocupação do pernambucano em agrupar a arte à existência humana, assim como, ressignifcá-la e desdobrá-la em outras direções.

Com "O Morro Não Tem Vez (Tom Jobim), composição já trabalhada por ele em "Semba" (2016), a sua ode ao samba e ao seu centenário, em formato pensado para o espetáculo de abertura, também está no trajeto que será percorrido nos pouco mais de 50 minutos de duração da apresentação no Marco Zero, o "coração" do Carnaval, festa definida por ele como "o local onde se sente mais a presença da alma coletiva do que somos".


Artista pernambucano Antonio Nóbrega - Crédito: Divulgação

"Temos a classe média de um lado e o povo do outro, em uma outra dimensão, entregue aos desfiles, troças, caboclinhos e maracatus. Não tem certo nem errado nisso, é a realidade, mas dentro dessa dinâmica o que estamos construindo com isso? Qual a função social que se tem com as repetições de 'Madeira Que Cupim Não Rói' ou 'Valores do Passado'? Será que Carnaval é só desregramento? A ideia do espetáculo é queimar energia e trazer um pouco de luz", conta Nóbrega, que levará de figurino inspirações advindas do artista plástico Bispo do Rosário e Joãozinho Trinta, deste último o 'lixo revolucionário' que levou para a Comissão de Frente da Beija-Flor, desfilantes vestidos de mendigos, dentro de um contexto proposto pelo tema da Escola naquele ano (1989), 'Ratos e Urubus Larguem Minha Fantasia'.

"Não vamos usar os paetês habitualmente associados ao Carnaval. Queremos devolver uma percepção que é antiga, do povão que não tinha dinheiro para comprar muita coisa e usava o que tinha".

Ouvi dizer que numa mulher, não se bate nem com uma flor...
"Cantar (...) Já se acabou o tempo que a mulher só dizia então: - Xô galinha, cala a boca menino, ai, ai não me dê mais não, era no tempo em que a mulher estava começando a se promover, hoje os temas são outros. É pegar o gênero, a estrutura, e escrever coisas que falem da atualidade, essa é a função da marchinha", protesta Antonio Nóbrega, desapegado dos discursos "de sempre" contidos nos frevos e em suas variações, que podem (devem) dar passos adiante.

Defensor de culturas não-estáticas e fazedor de arte, configurada nas discografias "Segundas Histórias", "Na Pancada do Ganzá", "Madeira Que Cupim Não Rói", "Pernambuco Falando para o Mundo" e "Lunário Perpétuo", entre outros trabalhos, incluindo criações no teatro e na dança, o "recriar um tema a partir do ritmo pernambucano" é ofício incansável ao militante da cultura popular.

O desaguar multiplicador de Antonio Nóbrega, que resgata a cultura popular em sua essência e a faz respingar palcos afora, é exceção à regra de fundir a arte à vida, premissas ainda apartadas, por muitos. Aprendiz de mamulengueiros, emboladores, dançarinos, poetas e outras raízes nordestinas, foi com "A Bandeira do Divino" (1976) que ele fez sua estreia no Recife e com a "Arte da Cantoria" (1981) ele deus os primeiros passos no teatro, em São Paulo, onde vive há algumas décadas e mantém o Instituto Brincante, espaço dedicado à formação de novos saberes do fazer artístico, levado por aulas, shows, espetáculos e encontros com artistas.

Com o mesmo ar faceiro com que ele recebeu a Folha de Pernambuco, ele esboçou simplicidade e calmaria para sinalizar esperanças de outros 'Nóbregas' empenhados em extrair virtuosismos Brasil afora, por mais que seja um trabalho que "por si mesmo, vá contra a maré". "O que eu faço é folclore, mas nossa redenção virá com a arte".